17/05/2015

Os outros Beatles [dossier George Harrison 1943-2001]



sábado, 1 de Dezembro 2001

Dossier George Harrison (1943-2001)

Os outros Beatles

PAUL McCARTNEY: O romântico

Era e é o compositor das baladas sem mácula. Já depois da separação dos quatro Beatles, John Lennon criticava-o por escrever para os Wings "silly love songs", demasiado melosas. Consta que Lennon nunca lhe perdoou o facto de ter sido Paul o único autor creditado em "Yesterday", canção através da qual muitos se identificam com a música dos "fab four" de Liverpool. Mais ou menos açúcar, mais ou menos romance - o mesmo romance que esteve sempre presente na sua relação com Linda Eastman, McCartney pelo casamento, recentemente falecida, e que determinou quase toda a sua produção musical pós-Beatles, com os Wings - a verdade, porém, é que Paul McCartney era o génio melódico do grupo. O compositor das melodias perfeitas que se colavam aos ouvidos de forma sobrenatural.

JOHN LENNON: O rocker

Foi desde sempre o eterno adolescente revoltado, defensor das causas perdidas, marcado por uma infância e relações familiares difíceis. Se Paul era o "designer" melódico dos Beatles, era John, assassinado com um tiro de revólver a 8 de Dezembro de 1980, quem lhe insuflava a energia e a rebeldia ou as ousadias experimentais que tiveram o seu auge em "Revolution no.9", a contra-canção do mítico "álbum branco", composta à revelia dos seus três companheiros. Faltava um quase nada para que toda esta raiva acumulada e atitude revolucionária se traduzissem numa posição de marginalidade no seio do grupo. Esse "quase nada" (para Paul era mesmo nada...) chamou-se Yoko Ono. Com ela, John aprendeu o outro lado do amor, o ciúme, o escândalo como arte, mas também a soltar definitivamente a sua veia de rocker. Também com ela, diz-se, começou o fim dos Beatles.

RINGO STARR: O bobo

Acusaram-no de tocar mal bateria, mas sem ele a música dos Beatles teria sido outra. Ringo Starr nunca se preocupou muito com isso. A sua personalidade conseguiu sempre superar a ausência de verdadeiras capacidades musicais ao mesmo tempo que funcionava como escape para aliviar as tensões acumuladas entre John e Paul. Ele era o baterista dos Beatles e isso chegava-lhe, com uma pequena ajuda dos amigos (é sua a voz que canta "With a little help from my friends"). A sua bonomia e proverbial boa disposição - imortalizados no celulóide, na figura do bobo ingénuo, em filmes como "A Hard Day's Night" e "Help!" - valeram-lhe a simpatia de todos, ainda que poucos lhe reconhecessem o talento como músico. Mas também sem ele, sem uma canção como "Don't pass me by", o "álbum branco" teria ficado mais escuro.

Camané, o embaixador perfeito da saudade em Itália [Festival Sete Sóis Sete Luas]



17 de Julho 2001

No Festival Sete Sóis Sete Luas

Camané, o embaixador perfeito da saudade em Itália

Na cidade toscana de Pontedera (Itália), o fadista português cantou fado com "F" maiúsculo e comoveu uma plateia constituída em partes iguais por portugueses e italianos

Camané confirmou em Itália por que é considerado um dos maiores, senão o maior, fadista da actualidade. Na cidade toscana de Pontedera, em espectáculo integrado na programação do festival Sete Sóis Sete Luas, o cantor português conseguiu comover uma plateia constituída em partes iguais por portugueses e italianos, depois de uma primeira parte preenchida pelo folclore da Orquestra de Ponte de Sôr.

Faz calor, bastante calor, por estes dias, na Toscânia. Na Villa Malaspina, em Montecastello, no jardim do palacete pertencente a uma aristocrata, marquesa, no mesmo local onde, em edições anteriores do festival, já actuaram Teresa Salgueiro com António Chainho, Amélia Muge, Mafalda Arnauth e Cristina Branco, mal corria uma brisa, com uma temperatura de grilos, giestas e estrelas. O cenário, digno de um filme dos irmãos Taviani, convidava a intimismos. Camané encheu-o de fado. Fado com "F" maiúsculo, aquele que surge quando a música e a voz se excedem, passando para o lado do mistério.

Acompanhado à guitarra portuguesa por José Manuel Neto, à viola por Carlos Manuel Proença e, ao contrabaixo, por Paulo Paz, Camané deu a ouvir ao público italiano a poesia de Júlio Dinis, Manuela de Freitas, Fernando Pessoa, Antero de Quental, David Mourão-Ferreira e João Monge, entre outros. A música do fado, essa, levando embora a assinatura de autores como Frederico de Brito, José Mário Branco, Alfredo Marceneiro ou João Gil, alternando com uma quantidade de modalidades tradicionais, ganhou na voz de Camané tonalidades e uma força expressiva únicas. Camané entra dentro de si, procura dentro de si, canta dentro de si. Explorando os ventos (palavra, aliás, recorrente em muitos dos poemas...) e os espaços, os silêncios e as preces, entre o arrebatamento e a suspensão do voo das aves. Se, nos fados tradicionais, a sua voz se move como peixe na água, foi através da escrita de José Mário Branco - produtor de todos os seus álbuns até a data, incluindo o próximo, já gravado e pronto a ser editado em Novembro - que Camané demonstrou ser possível ao fado soar simultaneamente eterno e novo, clássico e inovador, português e universal. Em dois desses fados, "Eu não me entendo" e "Sopram ventos adversos", algo de transcendente pairou sobre a música. Algo de muito antigo e, paradoxalmente, moderno, com o canto do fadista a navegar entre uma guitarra e uma viola de sabor árabe-medieval e um contrabaixo solto nas liberdades do jazz. Admiração, espanto, devoção. Camané foi o embaixador perfeito da saudade. E da contemporaneidade (não haverá muitos fadistas que, como ele, se entusiasmaram com o concerto recente dos Von Magnet, em Portugal...).

"Guitarra, guitarra", de Jorge Fernando, foi outro dos momentos altos da sua actuação, enquanto em "Escada sem corrimão" os versos de David-Mourão Ferreira ganharam na voz do fadista ressonâncias inigualáveis, provavelmente porque ele próprio as terá feito suas: "É uma escada em caracol/E que não tem corrimão/Vai a caminho do sol/Mas nunca passa do chão (...) Adivinhaste, é a vida, a escada sem corrimão". Camané subiu-a a pulso.

Depois do concerto choveu e trovejou. É costume, no Verão da Toscânia. As comitivas de Camané e de Lula Pena (que hoje actua no mesmo local) rejubilavam, rindo e gritando vivas a Itália, num deslumbramento de relâmpagos, cânticos improvisados e vinho tinto "Chianti".

O último adeus de Amália



9 de Julho 2001

Velocidade impede o povo de acompanhar cortejo

Trasladação de Amália para o Panteão Nacional

O último adeus de Amália

Ao contrário do que aconteceu no funeral da fadista, foi impossível segui-la na última das despedidas. O carro funerário foi mais veloz. No Panteão, o Presidente da República fez o elogio de Amália, protagonista de "uma das carreiras mais gloriosas do século XX"

"Não sei se fui amada", costumava dizer Amália. A homenagem nacional que ontem lhe foi feita, acompanhada da trasladação dos seus restos mortais, do Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, onde repousavam desde a data da sua morte, a 6 de Outubro de 1999, para o Panteão Nacional, onde a partir de ontem passa a ser a única mulher aí presente, ao lado de vultos da cultura portuguesa como Almeida Garrett, João de Deus e Guerra Junqueiro, mostraram que não foi esquecida, como tanto receava. Não tanto pela pompa e circunstâncias da cerimónia em si, como pela demonstração de fidelidade e saudade com que o povo continua a acarinhar a sua memória. Amália foi e continua a ser amada pelos portugueses.

Os rituais de homenagem propriamente ditos, consumada a operação prévia de transportar o corpo da fadista da campa onde se encontrava, para a capela do cemitério, começaram à hora de almoço. Não eram ainda muitas as pessoas que nesse local podiam circular em volta da urna. Uma hora mais tarde já eram algumas centenas, envolvidas na azáfama dos "media". A maioria pessoas de idade, as que ouviram mais de perto a música de Amália. Os novos estão no Meco. O fado de Amália pertence a outra geração. Representou ou não Amália o Portugal dos três "F", fado, futebol e Fátima? Hoje, o fado rejuvenesceu e o futebol transformou-se num negócio. Fátima continua a vender bem.

Uma apresentadora de serviço retoca a maquilhagem. Coloca bâton nos lábios e pó nas faces esquecendo-se, apesar do local, da máxima "do pó vieste, ao pó retornarás". O vento arranca o boné da cabeça de um dos muitos polícias fardados a rigor que compõem a guarda de honra, quebrando-lhe por instantes a solenidade da pose.

No cemitério vai entrando cada vez mais gente. Amália atrai gente. A televisão em directo atrai gente. Uma senhora põe a tocar no gravador que leva na mão, fados da homenageada. Não deixam os outros mortos descansar em paz. Também há turistas, embora não se descortine nas imediações qualquer banca de venda de CD. De quando em quando os altifalantes difundem os testes de som. Um som de baixo, uma flauta, um piano, trémulos com a responsabilidade do momento solene que está para vir.

Às 17h08, poucos minutos depois da hora prevista, a urna, coberta por uma bandeira nacional, é finalmente depositada no exterior, exposta aos raios implacáveis do sol, à força da saudade, à indiscrição das câmaras, à curiosidade impiedosa.

A excitação aumenta. Uma família exibe grandes fotografias emolduradas da fadista. Logo aparece alguém que, por sua vez, os fotografa. Emoção e exibicionismo confundem-se. Um homem traz vestida uma t-shirt com a imagem de Amália estampada. Um grupo de senhoras recorda o nome de outros fadistas, todos eles antigos, incluindo o de Berta Cardoso, de quem Amália era admiradora. O mote principal é: "Eu gostava de Amália. Eu falei com Amália. Eu comprei batatas na mesma mercearia que Amália. Estou aqui. Filmem-me!".

O grupo instrumental e coro juvenis ensaiam uma vez mais as suas canções. Experimenta-se pela enésima vez, o som. O som está bom. A música exprime religiosidade e saudade - "Queremos estar junto de ti!" - ao melhor estilo de baladas pop FM (com mais órgão electrónico). No interior da capela outro coro, improvisado, canta, emocionado, mais uma despedida, ao mesmo tempo que, lá fora, o coro oficial continua a cantar o reportório que faz parte do programa. Misturam-se as canções e os sentimentos. O ruído de um avião abafa ambos. Na capela irrompem aplausos frenéticos, tendo como fundo a imagem de Cristo crucificado. "Amália tem mais encanto na hora da despedida", adaptado à diva do fado de Lisboa, é o hino que ficou". O frenesim das televisões aumenta. A atenção das pessoas, ávidas de aparecer, também. "Só a TVI tem uma quantidade de câmaras", comenta alguém com ar de entendido.

Não há procissão

Ainda antes das cinco e meia da tarde aparece uma comitiva de políticos para cumprimentar os familiares de Amália. Almeida Santos, João Soares, Maria de Belém, Mota Amaral. Pouco depois tem início a missa campal. Tudo decorre nos conformes. A homilia chama a atenção para o facto de que "todos nos encontraremos com Amália na Jerusalém Celeste, para ouvirmos outros fados, diferentes das melopeias da Terra".

O padre destaca ainda algumas das qualidades da música de Amália. Segundo ele, Amália "cantou o tempo, a história dos homens" e "a beleza da criação - o mar, os pinheiros, as fontes, a luz da lua, o lençol de linho...". Acentua ainda - e aqui acerta em cheio - o "fado ardente". O fado de Amália era isso. À bênção, que inclui todos os que jazem no cemitério e a comunicação social, sucede uma oferenda de flores a Nossa Senhora do Carmo, ao som do fado com o mesmo nome. A missa dura uma hora. "Deus a tenha em descanso", remata alguém.

Pouco depois o carro que transporta a urna sai do cemitério. Lá fora, outra pequena multidão, aplaude. Os que seguem atrás da viatura acenam com lenços: "Ela merecia"", "Viva o povo!", "Isto até parece uma procissão". Mas, surpreendentemente, não há procissão. O cortejo fúnebre de 6 quilómetros, através da cidade, de que toda a gente estava a espera, à semelhança do que acontecera no dia do funeral da fadista, nem sequer chega a começar. O carro dispara em velocidade de rally, a abrir. As pessoas, espantadas, desatam a correr atrás dele, tentando acompanhar o bólide. Em vão. A situação passa rapidamente do ridículo para a indignação geral. "Que estupidez!", "Daqui ao Panteão são duas horas!", "Então faz-se uma coisa destas?", "O povo vem cá para acompanhar o funeral e depois desaparecem?", "Quando lá chegarmos já ela passou à frente da porta de casa", "Estiveram ali um dia inteiro a engonhar para isto" são algumas das frases disparadas por quem se dispunha a acompanhar durante mais algum tempo o seu ídolo e via as expectativas goradas, sem aviso. Mesmo assim há quem reaja com bonomia: "O povo devia ser transportado em autocarros!".
Desaparecido o carro funerário na primeira esquina da Rua Saraiva de Carvalho e tendo nós conseguido percorrer apenas uma centena de metros a pé, a opção foi seguir directamente de táxi para o Panteão.

Símbolo colectivo

No largo do Panteão, a multidão é maior do que nos Prazeres e o ambiente tem a solenidade que lhe é conferida pela presença do Presidente da República e do Primeiro-Ministro. Paulo Bragança entra discretamente no monumento. A urna supersónica trava enfim. Um grupo de jovens, afogueados e de língua de fora, que conseguira segui-la, "a correr", desde Alcântara, exibe, ofegante um cartaz rabiscado à pressa: "Amália do coração do povo". Já mais devagar, os seis elementos que transportam a urna recebem a instrução para "seguirem sempre no mesmo passo". Quando a depositam, de novo, agora em frente à entrada do panteão, onde ficará a repousar para sempre, o entusiasmo e fervor populares explodem. O coro dos Antigos Orfeonistas da Universidade de Coimbra entoa o hino nacional. Há uma senhora que chora e logo uma câmara de televisão salta por sua vez para a sua frente, na ânsia de registar a dor em directo.

Pouco depois das 20h Jorge Sampaio faz finalmente o elogio da artista, destacando nela "símbolo colectivo": "Fez da sua voz uma Pátria, um Bilhete de Identidade, dela e nosso, um passaporte que nos levou a todo o lado". E a "fidelidade ao coração" e a "ressonância universal" do seu fado: "Houve gente que aprendeu a falar português só para perceber as letras". Já com a voz embargada pela emoção, engana-se no nome daquela que, diz, teve "uma das carreiras mais gloriosas do século XX": Amala, em vez de Amália. Tinha razão. Amália foi amada. Ainda é.

Madredeus em movimento perpétuo



Abril 2001

O novo disco "Movimento" é a lapidação, cada vez mais depurada, lenta e cuidadosa, do diamante Madredeus

Madredeus em movimento perpétuo

A partir de hoje e por mais cinco ocasiões - nos dias 6, 7, 12, 13 e 14, no Parque da Cidade - o Porto vai movimentar-se ao som de "Movimento", o novo álbum dos Madredeus, nas lojas a partir do dia nove. Seguir-se-ão outras seis datas, em Lisboa, numa tenda instalada por trás da Praça Sony, no Parque das Nações.

O movimento dos Madredeus persegue a coincidência. Entre o exterior e o interior, o espírito e o gesto. Pedro Ayres Magalhães escreve coisas simples sobre Portugal porque Portugal é um país simples. Querem fazê-lo europeu e complicado. Mas como os portugueses não foram, não são, nem serão nunca espiritualmente europeus - a Europa fica ali, nós estamos aqui; quando a Europa chegar à força até aqui, como aconteceu quando vieram os franceses, no séc. XVIII, nós estaremos distraídos, a cismar, acolá - a complicação é pior.

Outra palavra adequada à música e ao corpo dos Madredeus: transparência. E claridade. Mesmo de noite - pode ser a noite do fado - a luz da lua banha os sons e as palavras, afastando o medo. O escuro dos Madredeus é uterino, como o da "Mãe Deus", virgem simultaneamente branca e negra. No seu regaço, "Movimento", álbum mais recente da banda de Teresa Salgueiro, Pedro Ayres Magalhães, Carlos Maria Trindade, José Peixoto e Fernando Júdice atravessa a fase de lua-nova. Paradoxo: o movimento torna-se extático. A eternidade revelada na permanência de Parménides. Olha-se, expectante, para o rio que corre. Das margens.

"Movimento" é a lapidação, cada vez mais depurada, lenta e cuidadosa, do diamante Madredeus. Entre a aceitação que a música do grupo tem obtido no estrangeiro, com a consequente pressão de continuarem a dar respostas à altura desse êxito, e a interiorização e o silêncio necessários para que a criatividade se manifeste, os Madredeus respondem com a permanência no caminho que desde "Os Dias da Madredeus" resolveram trilhar e que é só deles: dar corpo e voz a um mito, tão português como universal. "Movimento", delicadamente envolto em vestes "new age", adornos árabes, capas negras do flamenco e do fado, no seu recolhimento de música de câmara que pode ser festiva e popular, apresenta, entre 16 novos temas à altura dos pergaminhos do grupo, cinco canções tocadas pela graça: "Afinal - a minha canção", "O labirinto parado" (talvez o seu momento mais alto e uma boa metáfora sobre o país no seu estado actual), "O segredo do futuro", "Graça - a última ciência" e "Tarde, por favor", suspensão final de todo o movimento.

De um concerto dos Madredeus, apesar da familiaridade com o grupo que o estrangeiro nos ensinou a ter (é sempre assim, connosco...), espera-se que nos mova (a cada um, seu movimento). Que nos dê ânimo (a cada um, o seu entusiasmo). Que nos embale (a cada um, o seu sonho). Que nos comova (a cada um, a sua alma).

Será assim, nos seis espectáculos do Porto. Será assim, a seguir, nos seis espectáculos em Lisboa. Será assim nos territórios ocultos.

Os músicos estarão hieráticos em palco. Como sempre. Formas matemáticas por cujas linhas e centro passam os ventos, as águas, as chamas e as pedras do que nunca se sabe como nem o que será. Eixos. Espadas. Vitrais. A voz de Teresa Salgueiro voará a lembrar-nos que somos crianças feridas. As palavras de Pedro Ayres terão a eterna simplicidade do indivisível que cada um deverá dividir e multiplicar dentro de si, milagre dos pães. A música será o movimento. Já se faz ouvir.

Pedro Ayres Magalhães escreve sobre coisas simples. Há muito, ou cada vez mais agora, esquecidas. O segredo de tudo está em "O segredo do futuro": "O segredo do futuro / é o amor / um amor sublime e puro / o belo amor / só o amor / resolve tudo / Numa esperança maior". Não há nada mais simples. Nem mais difícil. Para se chegar ao centro do labirinto (onde está dependurada uma espada), faz-se a travessia pela Graça, última e gaia ciência, a do intelecto amoroso.

Os Madredeus são portugueses (estão sempre ao mesmo tempo longe e perto, quer dizer, fora dele, do tempo). A música dos Madredeus é portuguesa (canta-se como se fosse nossa desde que aprendemos a cantar). Só falta Portugal.

O top e a forca [Festival Noites Celtas]



10 de Abril 2001

O top e a forca

Susana Seivane (sábado) e os Tendachënt (domingo) salvaram a face das duas últimas "Noites Celtas" que este fim-de-semana decorreram no Coliseu do Porto. A gaiteira galega pôs toda a gente a dançar. Os italianos trouxeram consigo a melhor música do festival. Desiludiram as duas bandas britânicas, Oyster Band e The Men They Couldn't Hang. Se os primeiros não desbarataram por completo o prestígio adquirido quando nos anos 80 foram considerados uma ostra com pérola do movimento punk folk, já os "homens que não podiam ser enforcados" mereceram, de facto, a forca. Comentava alguém: "Mas isto é o Super Rock Super Bock, ou quê?" O pior fecho de festival de que há memória.

Sem deslumbrar e demonstrando algum cansaço (a média recente de concertos tem andado perto de um por dia) Susana Seivane (na foto) conseguiu mesmo assim levar no sábado para o Coliseu a sua alegria contagiante e uma boa dose do virtuosismo que lhe é reconhecido. O principal problema com que hoje se debate, ao vivo, será o de não ter uma banda de acompanhantes à sua altura. Faltam grandes arranjos e rasgos instrumentais. Dos solos que se sucedem a um ritmo vertiginoso à apresentação dos temas, passa tudo por ela. Chega por enquanto para contagiar as audiências e fazê-las dançar, mas adivinha-se a necessidade de mudanças. Mas vale sempre a pena ver e ouvir esta gaiteira que ousou desafiar o feudo masculino das gaitas-de-foles na Galiza. E o seu reduzido top azul, fazendo ressaltar ainda mais as suas capacidades musicais, foi um dos "musts" do festival...
A fechar a noite de sábado, os Oyster Band tocaram rock "mainstream" com ligeiras reminiscências folk. John Jones, de óculos escuros e concertina à tiracolo, é uma espécie de Bono, dos U2. Fartou-se de gesticular, procurando dar um tom épico de "grande banda em palco" mas nunca conseguiu fazer esquecer que estavam ali um pouco deslocados.
Domingo, foi pena a ordem das bandas não ter sido trocada. Actuaram primeiro os Tendachënt, extensão natural dos La Ciapa Rusa, sob a liderança de Maurizio Martinotti. A principal ruptura será a inclusão de uma bateria, no sentido de permitir um "alargamento" do som capaz de encher palcos de grandes dimensões, como o do Coliseu do Porto. Mas é a sofisticação dos arranjos e o extremo bom gosto de Martinotti que continuam a destacar-se. Para este exímio executante de sanfona, a música tradicional do Piemontes é um tesouro a partir do qual elabora requintados bouquets, um pouco como faziam os Malicorne, em França, nos anos 70. Contrapontos violinísticos, polifonias vocais de recorte delicado, baladas emocionantes (algumas delas retiradas do reportório dos La Ciapa Rusa) e as colorações medievalistas da sanfona combinaram-se numa sessão de folk progressivo com a complexidade e a riqueza de uns Gentle Giant. Juntamente com os Muzsikas, os Tendachènt provaram ser possível agarrar uma audiência sem o recurso aos decibéis e ao facilitismo.
Que foi o que fizeram a seguir os britânicos The Men They Couldn't Hang. Nem num pub se aceitaria uma música tão pobre. Uma ofensa tanto ao rock como à folk. O público foi saindo, os mais jovens bateram palmas sem entusiasmo, as "Noites Celtas" não ganharam para o susto. Sem os italianos, teria sido um desastre.
Já de madrugada, no café.concerto do Rivoli, a Banda do Rei Pescador, ex-King Fisher's Band, uma das bandas de animação de bares mais antigas do Porto, conseguiram levar a sala à loucura, com interpretações castiças de hinos como "Céu azul, nuvens brancas", em homenagem ao FCP, e outro cujo refrão diz "Estou apaixonado por um molho de cenouras". Convenhamos que não terá sido um final dos mais dignos...

Em resumo

Melhor música - Muzsikas e Tendachënt
Desilusão - The Men They Couldn't Hang
Era escusado - João Afonso e Oyster Band
Adereço musical - O top azul de Susana Seivane