16/11/2009

Basco da Gama [Kepa Junkera]

Sons

25 de Setembro 1998

Kepa Junkera, navegador da trikitixa, parte de Bilbau para o resto do mundo

Basco da Gama

“Bilbao 00:00h” é uma metáfora. De uma cidade, Bilbau, e de uma maneira pluralista de entender a música do mundo. Uma “hora mágica”, um “começo” e um “ponto de encontro” do Norte celta, do Sul árabe e do mar, nas margens do País Basco. No meio da imensidade de estrelas convidadas por Kepa Junkera, está Dulce Pontes.

Kepa Junkera é um navegador. Das possibilidades ocultas da trikitixa (acordeão diatónico) e das músicas que nascem do encontro entre diversas tradições. O “virtuose” basco descreveu para o PÚBLICO algumas das etapas desta viagem.
PÚBLICO – “Bilbao 00:00h” é um disco sobre uma cidade ou um disco sobre o mundo?
Kepa Junkera – É um trabalho em que procurei reflectir a forma como encaro a música, uma espécie de resumo da minha carreira, iniciada há 15 anos, de todas as experiências que fui acumulando durante este tempo. É também um disco sobre o mundo, o mundo musical, mas é sobretudo uma homenagem à minha cidade, a terra onde nasci e cresci, um meio urbano que influenciou a minha maneira de ver a música. É ainda outra homenagem, a Astor Piazzola, um dos músicos que mais me marcou, pela sua música e pelo seu carácter.
P. – Por que razão escolheu para título uma hora como a meia-noite?
R. – Pretende ser uma metáfora. É uma hora mágica, um começo, um ponto de encontro. Atravessamos um momento no qual muitos jovens músicos começam a destacar-se, reclamando a atenção de público.
P. – Quem é Román Urraza, a quem o disco é dedicado?
R. – Era o meu avô materno. Tocava pandeireta. Ele e a minha mãe foram as pessoas que me deram a conhecer as raízes musicais do meu país.
P. – Gostaria que pormenorizasse um pouco, algumas das colaborações do disco: La Bottine Souriante, Dulce Pontes, Hedningarna, Phil Cunningham, Alasdair Fraser, Mairtin O’Connor e Liam O’Flynn.
R. – Os La Bottine Souriante, considero-os uma das melhores bandas de todos os tempos. Conheci-os há cinco anos, num festival no Quebeque. Dulce Pontes tem uma voz que não consegue passar despercebida. Convidámo-la para um concerto em Madrid, em Dezembro do ano passado. Propusemos-lhe gravar em basco um tema tradicional, “Maita nun zira?”, que ela cantou logo à primeira. Faz algum tempo que a música portuguesa tem uma palavra a dizer no panorama internacional, é um país de grandes músicos. Sempre me interessei, por exemplo, pela concertina, tão presente na música do Norte de Portugal. Quanto aos Hedningarna, a sua forma de tratar as melodias tradicionais, combinando-as com instrumentos vanguardistas, facilitou a ruptura com velhos esquemas, transportando a música para terrenos inexplorados. Phil Cunningham, Alasdair Fraser, Mairtin O’Connor e Liam O’Flynn representam a perspectiva celta, a partir do Norte.
P. – “Fali-faly” foi feito de propósito para mostrar o “virtuosismo” dos vários solistas envolvidos?
R. – É um hino à alegria onde cada músico contribui com os respectivos instrumentos, timbres e formas de interpretação específicos. Definitivamente, é o tema que melhor reflecte o que este disco pretende contar.
P. – Como aparece a referência a Portugal, em “Del Hierro a Madagascar”?
R. – A letra foi escrita por Pedro Guerra que, melhor do que ninguém, captou a componente da viagem que este disco necessariamente tem. E quando se fala em viajar não se pode evitar fazer referência ao mar e a Portugal, um dos países que melhor soube integrar outras culturas na sua cultura. Para os portugueses, como para os bascos, o mar constitui uma parte importante da sua tradição.
P. – Além de um forte contingente galego (Nuñez, Budiño, Beceiro), participam neste disco músicos ligados às tradições do Sul de Espanha, como o Luis Delgado ou o Fain Dueñas...
R. – Sim, e o Sebastian Rubio ou o Pedro Estevan. Nos últimos tempos temos sido bombardeados por música celta, eles trazem consigo outras formas de expressão que se fundem com naturalidade.
P. – O que mudou, de “Leonen Orroak”, com Ibon Koteron, para este novo álbum?
R. – “Leonen Orroak” era um trabalho mais experimental, uma tentativa de descoberta de todas as possibilidades de um instrumento ancestral, a alboka, de exploração dos seus segredos e mistérios. “Bilbao 00:00h” é diferente, uma reunião, algo aberto, motivo de alegria e de festa, onde podemos encontrar a alboka e a txalaparta compartilhando o mesmo espaço com a valiha, o acordeão e os teclados.
P. – “Bilbao 00:00h” é uma aposta evidente no mercado internacional. Este facto influenciou, de alguma forma, aspectos musicais como a produção ou os arranjos?
R. – Não. Através dos meus discos procurei sempre colaborar com outros artistas, explorar diferentes timbres, sonoridades e instrumentos. Não é um disco muito diferente dos outros. A quantidade de convidados é, sem dúvida maior, mas a ideia central permanece a mesma. Não se trata de uma moda, mas de uma necessidade.

Kepa Junkera - Bilbao 00:00h

Sons

18 de Setembro 1998
WORLD

Atlético de Bilbau

“As cidades nasceram para tapar o medo e fugir da saudade, mas acabaram por criar um medo e uma saudade mais fundos, mais incompreensíveis”, escreve Xabier Rekalde a propósito do novo álbum do mestre da “trikitixa” basca, Kepa Junkera, dedicado à cidade de Bilbau, uma das principais do País Basco. Mas Bilbau é também uma urbe “com respiração”, das “que se fazem e desfazem segundo o ânimo dos seus habitantes”. É ainda “uma cidade com música, a música que sai da terra e que chega pela língua do mar, trazendo palavras novas”.
É este trabalho de perpétua renovação de um fundo territorial e anímico aquele a que Kepa Junkera se dedica em “Bilbau 00:00h”. Todos os que tiveram a oportunidade de escutar este músico (ao vivo, no Intercéltico deste ano, como convidado dos La Musgaña ou em colaboração com o português Júlio Pereira, em “Lau Eskutara”) verificaram que Junkera está longe de ser um ortodoxo, sendo a sua atitude a do “virtuose” que procura alargar tanto as fronteiras do seu instrumento, o acordeão diatónico, como das próprias concepções enraizadas na tradição basca.
Neste aspecto, “Bilbao 00:00h” é uma viagem por estilos e encontros vários, com outros músicos e outras tradições que, sabendo manter uma integridade artística intocável, não esconde a sua preocupação em atingir faixas alargadas de mercado. Neste aspecto “Bilbao 00:00h” é um pouco o equivalente basco da “Irmandade das Estrelas” do galego Carlos Nuñez, sobretudo pela inimaginável lista de convidados ilustres. A Bilbau chegaram para gravar com Kepa Junkera os canadianos La Bottine Souriante, Justi Vali, de Madagáscar, Jaime Muñoz e Carlos Beceiro, dos La Musgaña, o próprio Carlos Nuñez e outro gigante da gaita galega, Xosé Manuel Budiño (juntos no tema “Fasio & lurra-terra”), Dulce Pontes, Paddy Moloney, dos Chieftains e Ibon Koteron (mago da “alboka”, instrumento de sopro tradicional do País Basco, com a forma de corno). Mas há mais, muitos mais: Phil Cunningham, dos escoceses Silly Wizard, Luis Delgado, Mairtin O’Connor (outro mago do acordeão, este irlandês), Liam O’Flynn, o prodigioso executante de “uillean pipes” e um dos fundadores dos Planxty, Alasdair Fraser, Luis Pastor, Javier Paxariño e a instituição basca, Oskorri.
Destaque para a participação de Anders Stake, Hallbus Totte Mattson e Björn Tollin, ou seja, os Hedningarna, que conferem um “swing” infernal, através das suas sanfonas e gaita sueca, a “Bok-Eskop”. Kepa Junkera e Mairtin O’Connor dialogam numa valsa basco-irlandesa sobrevoada pela flauta de Phil Cunningham, em “Muskerraren balsa & La balso de Combouscuro”. E que delícia escutar o timbre e modulações das “uillean pipes” de Liam O’Flynn, e da gaita galega de Xosé Manuel Budiño, respectivamente, em “Gesala” e “Gaztelugatxeko martxa”. “Fali-faly”, a abrir o segundo disco, apresenta uma sucessão de solos por Justin Vali (valiha), Mairtin O’Connor (acordeão), Carlos Nuñez (flauta), Alasdair Fraser (violino), Phil Cunningham (acordeão), Béla Fleck (banjo), Michel Bordeleau (sapateado) e Yves Lambert (voz).
África, País Basco, Irlanda, Escócia, França e Galiza juntam-se para formar uma nação de novos sons. “A que é que podemos chamar ‘nosso’?”, pergunta Kepa, a propósito deste tema, respondendo em seguida: “Ao que faz reconhecermo-nos a nós próprios em cada coisa.”
“Não há maior alegria”, cita, “do que comprovar as semelhanças entre dois estrangeiros”. Eis anunciada a nação da verdadeira “world music”, não como uma sopa sem coração nem cabeça, mas como lugar de diálogo e de partilha de diferenças que bailam entre si.
“Bilbao 00:00h” é uma impressionante paleta de paisagens sonoras, nas quais cada formação instrumental determina o respectivo estilo e ambiente. Não se trata, em qualquer caso, de um disco de música tradicional (embora os veios mais fundos da tradição estejam presentes...), mas de uma exploração dos seus limites e do seu correspondente imaginário contemporâneo, através de desenvolvimentos formais em que o termo “fusão” não se torna descabido.
É sobretudo ao nível rítmico que Kepa Junkera mantém essa ligação a um registo étnico, basco ou não, sobre o qual se sobrepõem os códigos de geografias e discursos estéticos tão díspares como os atrás enunciados. “Bilbao 00:00h” consegue esse prodígio de unificar um mundo de coordenadas musicais que aqui se acolhem sob a universalidade da cidade de Bilbau e dessa sua permanente respiração vivificada por diversas culturas. Kepa Junkera ganhou uma aposta arriscada, conseguindo com “Bilbao 00:00h” uma proeza atlética de monta. A edição do disco é apresentada sob a forma de livro, com imagens e textos que completam, da melhor forma, a diversidade da música.


Kepa Junkera
Bilbao 00:00h (8)
2xCD Resistencia, distri. Movieplay

Vega, Väisänen, Vainio - Endless

Sons

18 de Setembro 1998

Essa terrível agonia

Vega, Väisänen, Vainio
Endless
Blast First, import. Symbiose


Alan Vega foi fulminado por um raio lançado por Elvis Presley. Mas essa visão que lhe macera a carne e o espírito esteve sempre acompanhada por uma terapia de electrochoques como única maneira de impedir a possessão definitiva. Se Presley personificava uma sexualidade enfiada num frasco de obscenidade perfumada, Vega cultiva o erotismo da fúria e a paixão pela morte. O “rockabilly”, na versão apocalíptica do ex-Suicide, é um eixo de metal incandescente que, à semelhança de Presley (e do mito em que a memória o transformou), trespassa o coração da América de lado a lado. Mas onde Presley promovia estranhas cumplicidades com Eros, Vega espalha armadilhas com a ajuda de Tanathos. Com os Suicide o sangue escorria carregado por dez mil volts de castigo. De “Cheree”, a derradeira canção de amor sem remédio nem sentido, ao suicídio e loucura narrados nesses dez minutos de inferno que são “Frankie teardrop”, a música dos Suicide subverteu num par de álbuns (“Suicide”, de 1977 e “Alan Vega – Martin Ver – Suicide, de 1980) a memória do rock’n’roll, amarrando à cadeira eléctrica a banana fálica dos Velvet Underground.
Com a extinção dos Suicide, a consequente carreira a solo do cantor derivou para uma acumulação de equívocos. O “rockabilly” e as entoações vocais presleyanas caíram numa caricatura. Faltava o estímulo de Martin Ver, cuja serração electrónica funcionava nos Suicide como o casino onde Vega, “crooner” da maldição americana, soltava sem entraves os seus fantasmas.
“Cubist blues”, editado há dois anos, representou o regresso em força de Alan Vega em direcção ao “paraíso” perdido dos Suicide, tendo por companhia Alex Chilton e Ben Vaughn. Mas, se o espírito dos Suicide estava já aí presente, faltava ainda o palco formal que garantisse e potenciasse uma nova sistematização da loucura. Foram dois noruegueses, Mika Vainio e Ilpo Väisänen, a preencher, dezoito anos volvidos sobre o último disco de originais da dupla – que nos concertos ao vivo tinha como hábito lutar corpo-a-corpo com o seu público, – o lugar de Martin Ver. Mika Vainio e Ilpo Väisänen, dos Pan Sonic, funcionam como uma fábrica de ritmos gelados em comparação com os quais os Kraftwerk soam como uma dança tropical. Mas aos primeiros sons de “Endless” sente-se a estocada: os Suicide ressuscitaram. Golpe a golpe, fere-nos a mesma orgia electrónica de sequências psicóticas, sonorizações de claustrofobia, equações sobre a termodinâmica do desespero. Que Alan Vega aproveita de forma sublime, se é que o termo se pode aplicar a este acto de tragédia que esconde, ainda e sempre, uma ânsia desamparada de amor.
“Pesadelo! Pesadelo! Pesadelo!”, grita Vega no vórtice do descontrolo emocional, sobre um martírio electrónico de alta tensão elaborado pelos dois nórdicos, em “Outrage for the frontpage”, um dos temas que reactiva de forma mais mortífera os centros nervosos dos Suicide. Mika Vainio e Ilpo Väisänen furam com brocas de dentista a ténue camada de resistência com que tentamos fazer frente ao medo. E é a cavalo no medo que Alan Vega invectiva, soluça e enlouquece, em sobreposições infinitas de ecos, reverberações, rupturas, duplicações e outros distúrbios vocais, numa agonia sem fim.

Quatro pistas para uma identidade [Amélia Muge]

Sons

11 de Setembro 1998

Amélia Muge responde “Taco a Taco” a recusa de três anos

Quatro pistas para uma identidade

“Taco a Taco” é o terceiro álbum de originais de Amélia Muge. Editado com três anos de atraso, porque antes não foi considerado “suficientemente interessante para o mercado”, é nele que a cantora se descobre e desdobra vocalmente através dos sintetizadores para chegar a uma nova forma de irreverência.

“Taco a Taco” permitiu a Amélia Muge avançar mais uma etapa no seu percurso de autodescoberta e de pesquisa de novas formas de intervenção estética. Mais do que politicamente correcto, o álbum deixa ao ouvinte completa liberdade de interpretação. Um jogo de escondidas com a modernidade que passa pela interacção com a tecnologia para chegar à descoberta de uma nova identidade musical.
PÚBLICO – Que diferenças existem, ao nível da lógica e dos processos de criação, entre “Taco a Taco” e os seus dois álbuns anteriores, “Múgica” e “Todos os Dias”?
AMÉLIA MUGE – À medida que fui avançando para este trabalho – e talvez muito marcada pela morte de uma pessoa a quem eu admirava especialmente, o Mário Viegas, em particular por um dos seus últimos trabalhos, “Europa Não, Portugal Nunca” – questionei-me sobre o que se poderá entender como politicamente correcto no sentido de uma maior liberdade musical. Todos os modelos, por muito bons que sejam, com o tempo acabam por caducar. Não na sua natureza, mas na sua eficácia.
P. – Refere-se à transição de um modelo essencialmente ético para um modelo estético?
R. – Se calhar a passagem de uma ética para uma outra ética diferente... Ainda tomando como referência, ao nível da intervenção, o Mário Viegas, ele tinha uma lucidez e uma capacidade de crítica social que, inclusive, passava pela música. Era capaz de pegar em coisas do Zeca e dizê-las. Havia nele uma tentativa, quase trágica, desesperada, de voltar um pouco ao contrário esses valores, no sentido de ir ao encontro da necessidade das pessoas de se sentirem mais leves em relação ao seu passado e ao seu futuro. Era aí que entrava a lucidez, a inteligência e o humor, uma arma perigosa.
P. – Como definiria a linha estética de “Taco a Taco”?
R. – O principal foram cada momento, cada tema e o que se passa dentro de cada tema. Como se, de repente, aquilo que nos preocupa no nosso dia-a-dia, coisas monstruosas, como a poluição, deixassem de ser determinantes para eu trabalhar melhor. No fundo, tentei encontrar respostas novas nos próprios materiais de criação. Como se tivesse havido um corte com as coisas a que eu estava mais apegada para me voltar sobre aquilo que, de facto, estava a fazer. Senti-me completamente liberta. Esse mundo antigo de referências, sociais e políticas, era como se não estivesse presente.

Pós-moderna?

P. – Comparando com os discos anteriores, cresceu a importância dos arranjos e da produção?
R. – Digamos que houve mais espaço e mais tempo. Normalmente, a pressão para se fazer as coisas é enorme. Enquanto se decide como se faz ou não se faz, anda-se ali muito tempo sem perceber, até os próprios recursos que se tem à disposição. Neste caso, como todo o álbum foi gravado antes de haver uma editora, sobrou um espaço menos condicionante.
P. – Nota-se que o estúdio esteve mais presente do que é habitual, nos tratamentos electrónicos da voz, por exemplo...
R. – Passei daquela fase, quase elementar, de gravar em casa, directamente, a voz, um piano ou um adufe, para um estádio onde, de repente, passei do gravador normal para um gravador de quatro pistas. [N.R.: Na verdade, de oito pistas, como explicou António José Martins, produtor de “Taco a Taco”, que acompanhou de perto as gravações do disco, ainda nesta fase doméstica.] Comecei a ter vontade de perceber o que era esse mundo. A grande questão não é a do som sintetizado em si – e este disco começou por ser gravado só com sons sintetizados –, mas a forma como esse som actua sobre nós. Que novas estéticas é que essa tecnologia e esse novo som determinam. Cheguei a uma forma final em que essa tecnologia age como uma espécie de interferência no som acústico.
P. – Essa questão, da tecnologia electrónica e das suas aplicações, introduz um outro tipo de discussão mais vasta. Até que ponto é que essa interiorização, digamos assim, da tecnologia, determinou uma inflexão profunda na sua música?
R. – Já em “Múgica” essa questão me espantava. Será que havia dois caminhos paralelos, eu a puxar para um lado e o José Martins e o mundo dele, dos instrumentos electrónicos, a fugir para o outro? Quanto mais ouvia músicos como o Hector Zazou ou a Laurie Anderson fui percebendo que mesmo algumas das tecnologias que eles usam serão no futuro artefactos tradicionais velhíssimos. Descobri neste novo disco o papel que as novas tecnologias poderão ter nas músicas tradicionais ou simplesmente acústicas. Para mim representou a descoberta de mim própria como intérprete. Enquanto antes compunha umas linhas melódicas mais ou menos adaptadas ao sentido do texto, um trabalho, digamos, de registo do real, agora como que descobri em mim outras vozes, a partir da análise das vozes sintetizadas. Um efeito de microscópio, de penetrar mais fundo. Claro que se o Bobby McFerrin ou a Laurie Anderson me estivessem a ouvir fartavam-se de rir, porque eles já descobriram isto há muito tempo. Eu não. E não cheguei aqui por um desejo de ser mais “moderna”, mas pela entrada progressiva, no meu universo sonoro, que sempre foi muito acústico, do trabalho do José Martins.
P. – Uma Amélia Muge pós-moderna?
R. – Sempre fui muito reticente em relação a esses conceitos. Nunca houve, como agora, uma modernidade tão igual. A tendência é sermos modernos todos da mesma maneira. A ideia de modernidade manifestou-se sempre através dos símbolos e da forma como estes estabilizam. Dou-lhe um exemplo. O tema de abertura, “Ai, flores”. Fiz este tema durante uma campanha política. Aquela coisa de levantar o braço porque estamos nesta estação mas se calhar na estação seguinte vão ser outros a levantá-lo. O tema tinha um bocado essa carga política. E de repente, quando estava a ordenar o alinhamento do disco, reparei que alguns dos primeiros versos dos nossos cancioneiros são “as flores do verde pinho dizei-me novas do meu amigo”? Surgiu uma segunda leitura do tema a partir de uma interacção, um “taco-a-taco”, entre o que tinha escrito e essa presença longínqua, que anunciava as novidades, das cantigas de amigo. As flores adquiriram um valor simbólico. É toda uma simbologia que também está presente nas imagens da capa, que juntam desde sinais da informática a hieroglifos egípcios. Descobri neste disco a força que têm os próprios significados, independentemente das intenções prévias da escrita.
P. – Se José Afonso tivesse sido mulher, poderia perfeitamente ter assinado interpretações como as de “Inda bem que há esquimós”. É outra das facetas interessantes de “Taco a Taco”, uma correspondência com o lado mais experimental daquele compositor...
R. – Concretamente, nesse tema, trata-se de um poema do António Grabato Dias, que sempre teve pena que o Zeca não musicasse: “Isto era mesmo para o Zeca!” “Inda bem que há esquimós” está de facto muito afonsino, talvez porque o sentisse quase como uma encomenda... Cantei-o imaginando o Zeca a cantá-lo. Depois, lá está, este é um disco onde o lado mais irreverente dos artistas de quem gosto veio mais ao de cima. Existe uma falsa irreverência nos dias de hoje. Parece que basta haver meia dúzia de palavras de ordem e meia dúzia de gritos no “proscenium” e já somos todos revolucionários. Mas no que continuamos a fazer todos os dias continuamos a estar prisioneiros das convenções. Na própria liberdade de criação há limitações, para não falar de proibições... “Taco a Taco” só não saiu há três anos porque não o acharam suficientemente interessante para o mercado...
P. – Para além dos espectáculos com Jorge Palma e o grupo búlgaro Pirin Folk Ensemble, colaboração da qual sairá em breve um registo em disco, em que ponto se encontra outro dos seus projectos, um álbum baseado em romances tradicionais portugueses?
R. – O projecto “Romances” é uma encomenda da Comissão dos Descobrimentos, onde, além de mim, colaboram Sérgio Godinho, João Afonso, os Vai de Roda, Brigada Victor Jara e Gaiteiros de Lisboa. Eu participo com dois temas, acompanhada por músicos dos Gaiteiros, aquele romance da donzela guerreira e um romance da D. Olívia, recolhido na Madeira, para o qual não se conhece, sequer, qualquer versão musicada, com arranjo do José Manuel David, dos Gaiteiros.

Bang On A Can - Music For Airports

Sons

11 de Setembro 1998
CLÁSSICA

Música para levantar voo

Bang on a Can
Music for Airports
Point Music, distri. Polygram

Está registado nas Estatísticas: “1/1” (16.39), “2/1” (8.25), “1/2” (11.36), “2/2” (9.38). Esta sequência de números, correspondente às quatro faixas e respectivas durações de “Music for Airports” tornou-se no paradigma de toda a música ambiental, cujas derivações actuais, do “chill-out” à “sombient”, passando pela “new age”, não cessam de dar razão a quem reconheceu, à época da sua composição, em 1978, a importância de uma concepção estética onde muitos não quiseram ver mais do que uma modalidade sofisticada de “muzak”, ou seja, simples música de fundo.
Brian Eno escreveu “Music for Airports” em 1978, dois anos depois da eclosão do “punk” e um ano depois da sua colaboração com David Bowie, em “Low”. É verdade que em “Low”, e em particular ao longo de todo o lado dois do disco, estão já presentes, sob uma forma mutante, as coordenadas da música ambiental. Mas “Low” era uma missa negra que torcia a Kozmisch/industrial music da escola alemã de Düsseldorf (Neu!, Kraftwerk) até a transformar num espectro apocalíptico. O que traía uma das regras essenciais da “Ambient music”, de nunca, em momento algum, se impor à atenção do ouvinte. A posterior colaboração entre Eno e Bowie, “Heroes”, acentua, aliás, o pagamento desta dívida, ao incluir uma faixa, “V-2 Schneider”, que é uma homenagem a um dos elementos dos Kraftwerk, Florian Schneider.
“Music for Airports” pode ainda reivindicar como antepassados directos outros dois momentos na obra do seu compositor: “No Pussyfootin’” e “Evening Star”, frutos da colaboração de Eno com o guitarrista Robert Fripp, respectivamente de 1973 e 1975, e “Discreet Music”, trabalho a solo do ex-Roxy Music, igualmente de 1975, qualquer deles percursores da actual corrente da chamada “systems music”. Mas ainda aqui o lado abstracto confundia-se com o conceito de aleatoriedade, faltando, tanto na combinação das “Frippertronics” da guitarra do ex-King Crimson com as fitas magnéticas e “loops” de Eno, como sistema de ciclos fechados de “input” perpétuo entre gravadores de “Discreet Music”, o factor humanista que é determinante em “Music for Airports”.
Claro que as premissas estéticas de uma música sem princípio nem fim onde os sons gravados se harmonizavam com os ruídos circundantes, constituindo uma unidade de movimento musical que, idealmente, deveria ser perpétuo, estavam já enunciadas em “Discreet Music” que, por sua vez, não passava de uma extensão, caucionada pelo passado pop do músico, do conjunto de doutrinas veiculadas nos anos 60 pelo papa do minimalismo La Monte Young, no seu “Teatro de Música Eterna”. Quanto ao lado não-intrusivo, ou decorativo, da “Ambiente music”, recorde-se que, já no início do século, Erik Satie preconizava que as suas “Gymnopédies” fossem escutadas ao mesmo tempo que se comia uma refeição, de maneira a que as notas musicais se misturassem com o barulho dos garfos e das facas.
“Music for Airports” era, contudo, um objecto “arty”, como os ingleses dizem, envolvido numa embalagem e num conceito minimalistas e num certo ar de mistério cabalístico. O álbum constituiu o primeiro de quatro volumes da série “Ambient” (no prolongamento da anterior série “negra” da colecção Obscure), juntamente com os posteriores “The Plateaux of Mirror”, de Harold Budd com Eno, “Day of Radiance”, de Laraaji, e, de novo, Brian Eno, com “On Land”, álbum que se pode considerar como complemento telúrico da atmosfera rarefeita de “Music for Airports” (Eno sairia para fora da estratosfera, atingindo a imponderabilidade do Cosmos, em “Apollo: Atmospheres & Soundtracks”, outro dos monumentos da música ambiental).
Para a estatística fica ainda a nota de “1/1” ter sido composto de parceria com Robert Wyatt e com o engenheiro de som, Rhett Davies. Na produção de “2/2” encontra-se o nome de Conny Plank, o alemão sem o qual o “krautrock” nunca teria existido.
Vinte anos depois da edição original de “Music for Airports” dá-se o golpe de teatro. De peça de música que parecia irredutível a qualquer processo de escrita e interpretação convencionais, “Music for Airports” passa a fazer parte do reportório “clássico” (ou contemporâneo, como lhe queiram chamar) erudito, através da sua apropriação pelos Bang on a Can, grupo cuja designação trai a formação académica dos seus elementos, “all-stars”, como se auto-intitulam, do circuito norte-americano da música contemporânea. A Maya Beiser, (violoncelo), Robert Black (baixo), Lisa Moore (piano e teclados), Steven Schick (percussão), Mark Stewart (não, não é esse em que alguns estarão a pensar, dos Mafia..., guitarra eléctrica) e Evan Ziporyn (clarinete e baixo clarinete) deparou-se a tarefa de fazer a transposição de uma obra aberta, na aparência flutuante, para uma combinação e arquitectura instrumentais mais ricas, sem cair na armadilha do compasso. Dessa transcrição para a pauta do ensemble foram responsáveis Ziporyn, Julia Wolfe, David Lang e Michael Gordon. Este último garante que Eno, ao contrário da aparente liberdade de que as notas em suspensão da sua “Music for Airports” parecem gozar, procedeu a um meticuloso trabalho de montagem, trocando a ordem das diversas secções. Além disso, para evitar qualquer tipo de cristalização, recorreram a um truque: em cada 40 segundos surge nos auscultadores dos executantes um sinal sonoro que funciona como detonador para o início de um novo ciclo de notas.
“Music for Airports”, na sua nova versão, já foi apresentada mais de vinte vezes ao vivo em diversos locais, entre os quais, o aeroporto de Stansted, perto de Londres, um dos preferidos de Brian Eno. A reacção de Eno ao trabalho dos Bang on a Can revela um misto de apreço e de modéstia: “O meu disco soa como uma maqueta do vosso!”. Eno distingue na nova versão uma maior componente emocional e compara as duas leituras a um conto de Jorge Luís Borges, na qual um escritor, Pierre Ménard, reescreve na íntegra o “D. Quixote” de Cervantes, sendo as duas obras absolutamente iguais na forma e, contudo, absolutamente distintas nos seus respectivos contextos.
O que “Music for Airports”, dos Bang on a Can, faz, em relação a “Music for Airports” de Brian Eno, é pôr em relevo a composição, contrapondo a noção de tecido à da célula, o tom forte à tonalidade esbatida, a pluralidade de timbres às “drones” de sintetizador, cânticos celestiais e pingos de piano original.
Os Bang on a Can não escondem a sua admiração por Brian Eno. Em “Music for Airports” encontraram, segundo dizem, uma abordagem inédita à questão: “Até onde é que a música pode ir?”. Obviamente, a resposta é: ao céu. A diferença está em que os Bang on a Can levaram o título demasiado à letra e a sua “Music for Airports” nunca chega verdadeiramente a descolar. É que, ao contrário do que julgaram, Brian Eno não levantou voo de avião.

06/11/2009

Carta de Miranda para o Fernando

Carta de Miranda para o Fernando
Publicada no jornal PÚBLICO a 1 de Novembro de 2009

Viajens com bolso
por Alexandra Lucas Coelho

Não acredito que os mortos nos ouçam, mas tu acreditavas e eu estou em Miranda.
Hoje vi um poema na parede com o teu nome por baixo. Quando morreste, o Mário Correia, do centro de música de Sendim, ficou sem fala. Depois foi ao livro dos visitantes e emoldurou aquilo que lá tinhas deixado no dia 23 de Julho de 2003.
E assim estás lá, no meio dos discos, dos filmes, dos livros, das 1800 horas de música recolhidas pelas aldeias, e até hoje há uma cadeira vazia no Festival Intercéltico que é tua, diz o Mário. Foi ele que pela primeira vez te pôs uma gaita-de-foles nos braços, que festa.
O país de Lisboa enfeita-se de vez em quando com Miranda, mas aquilo eras tu.
Quantos textos nos mandaste daqui? Quantos concertos da June Tabor, quantos Intercélticos, quanta paixão?
Havia a música, a gente tocava, dançava, comia e bebia. E às tantas tu ias sozinho pelo planalto, ver a lua, ver o rio.
Diante do princípio do mundo que é o Douro em Miranda talvez Lisboa esteja extinta. Ou talvez tudo possa ainda começar.
Nas arribas hoje de manhã era Verão, o rio polido, as pedras quentes. Mas já havia árvores douradas e vermelhas e as folhas dos choupos flutuavam na água.
À hora do almoço fomos comer a posta à Gabriela. As alheiras, de entrada, tinham sido feitas ontem. Provámos compota de figo, abóbora, marmelo, ginja, cereja e pêra.
A Adelaide diz que já ninguém passa fome em Sendim, mas o pastor Lázaro, de Duas Igrejas, contou-nos que um pastor do outro lado do monte se enforcou há dias, deixando oito filhos, porque já não podia com as dívidas.
Ao lusco-fusco, as pedras entre Sendim e Bemposta pareciam grandes animais deitados.
A lua entrou antes do sol sair, quase cheia.
Não vi a casa do teu Sporting, só a do Benfica, e à noite, na televisão, passou o Porto-Belenenses.
Na associação dos pauliteiros em Duas Igrejas poucos olhavam o jogo. Os mais velhos batiam cartas, as raparigas comiam castanhas, os rapazes abriram o salão e fizeram três danças com os paus, incluindo a do salto de cavalo. Estavam cheios de proa por terem ido à América em Junho. Puseram-se a dançar em Times Square com as saias e tudo.
Hoje, domingo, 1 de Novembro, Miranda vai ver os seus mortos, levar-lhes flores, falar com eles. Parece que daqui se ouve melhor.
O Mário contou que quando vocês iam às arribas, ele dizia: “Como somos pequenos.” E tu dizias: “Estás enganado, aqui somos enormes.”
No poema que deixaste em Sendim, há este verso: “E das pedras se faz luz.”
Fazias tu, e era isso que a gente lia.

(Fernando Magalhães, jornalista fundador do PÚBLICO, morreu a 15 de Maio de 2005, aos 50 anos).

Rivalizando com os clássicos

Sons

14 de Agosto 1998

Rivalizando com os clássicos

O rock ambicionou rivalizar com os clássicos ao entrar na chamada “idade adulta”, algures entre 1969 e 1974. Dos King Crimson aos Procol Harum, passando mesmo pelos Deep Purple, a música eléctrica jogou a cartada do prestígio e da seriedade. E nem tudo foi tão desastroso quanto a reacção punk quis fazer crer.

Em 1970, um crítico do jornal inglês “Melody Maker” intitulava a sua recensão de “Lizard”, terceiro álbum dos King Crimson: “Rivalling the Classics”, rivalizando com os clássicos, título demonstrativo, em partes iguais, de espanto e de admiração. Espanto porque “Lizard” representa, de facto, um salto qualitativo enorme. Admiração, perante a complexidade ostensiva e a riqueza “orquestral” dos arranjos de um álbum que ficou como um dos marcos da música progressiva e que, devido a essa complexidade estrutural, podia de facto rivalizar com as grandes construções sinfónicas da música clássica.
Mas “Lizard” representa uma excepção numa música que sofreu nas décadas seguintes com o anátema redutor de “rock sinfónico” que alguma crítica pouco esclarecida lhe colou, provavelmente confundindo a parte tardia e americana, de aventesmas como os Journey e os Boston, com o todo. Mas, como se pode ler numa das últimas edições da revista “Wire”, a propósito do novo (e excelente) álbum dos 5Uu’s, nos anos 70 e na música progressiva em particular, para cada Emerson, Lake & Palmer, Renaissance e Procol Harum existiram sempre uns Soft Machine, Magma ou Faust.
Seria, contudo, fácil ver na década de 70 um cadinho de excessos, mas tal não se verificou. A complexidade do progressivo orientou-se noutra direcção, aumentando não o formato clássico da canção pop da década anterior (Beatles, Stones, Kinks, Beach Boys), mas sim o esqueleto dos blues. São os blues, e a sua derivação para o rhythm’n’blues, que em Inglaterra partem para a grande aventura do progressivo, através da inclusão de estéticas que, essas sim, eram alheias às raízes negras. Dos Jethro Tull aos Blodwin Pig, dos Atomic Rooster aos Colosseum, dos Jody Grind aos Groundhogs.
Assiste-se então, sobretudo entre 1969 e 1974, à proliferação de faixas longuíssimas que deveriam ocupar lados inteiros de um LP ou, melhor ainda, um disco inteiro (“Tales from Topographic Oceans”, dos Yes, preenchia dois...). Por outro lado, era ponto de honra mostrar nas capas fichas técnicas não menos extensas, com a descrição detalhada de todos os instrumentos utilizados, do sintetizador mais sofisticado à campainha de porta. A música clássica entrava, como era evidente – até pela formação erudita que tinham sobretudo os teclistas das bandas –, nesta equação, bem como a utilização de instrumentos clássicos. Exemplares desta cultura intelectualizante e erudita foram os Gentle Giant, que faziam gala em integrar na sua música o violoncelo, o timbalão de orquestra, o oboé e o fagote. Mas os Gentle Giant eram geniais, apesar de usarem, num dos temas do seu álbum de estreia, “Gentle Giant”, algumas notas de piano de “Fur Elise”, e Beethoven, sem mencionarem a fonte.
Por outro lado, a utilização de orquestras (que, aliás, já vinha dos anos 60, dos Beatles aos Moody Blues) serviu sempre mais de balão de oxigénio do que de veículo de enormes inspirações épicas. “Concerto for Group and Orchestra”, dos Deep Purple, ou “Live in Edmonton”, dos Procol Harum – que viraram ao contrário a “Suite nº 3 em Ré Maior” de Bach, em “A whiter shade of pale”... – são meras redundâncias orquestrais que funcionaram para os respectivos autores do mesmo modo que uma injecção de corticóides num atleta.
Depois há as imitações de composições clássicas. Os Emerson, Lake & Palmer gravaram um álbum inteiro com a sua recriação das “Pictures at an Exhibition”, de Mussorgski. Os Renaissance fizeram a sua própria “Scheherazade”, de Rimsky-Korsakov. Mesmo os Egg, paradigma do lado mais criativo e experimental do progressivo, não resistiram a mostrar no álbum de estreia que eram capazes de interpretar à sua maneira a “Tocata e Fuga em Ré Menor”, de Bach, ao mesmo tempo que se inspiraram num dos andamentos da sua “Symphony no. 2”, “Danse des adolescents”, e na “Sagração da Primavera”, de Stravinsky. Rick Wakeman, dos Yes, enfiou a sua adaptação do terceiro andamento da “Quarta Sinfonia em Mi Menor”, de Brahms, em “Fragile”. Os Beggars Opera, em “Act One”, transformaram em “hard rock” a música de Franz Von Suppé. Richard Harvey, dos Gryphon, gravou a solo “Divisions on a Ground”, um exercício de música barroca onde mostrou todo o seu virtuosismo na flauta de bisel. Vivaldi era presença assídua no violino de Daryl Way, dos Curved Air.
Mas estes foram pecados menores de uma música que viajou tão longe quanto lhe foi concedido pela indústria, antes de ser estrangulada pelo punk. Nesta medida, na vontade nietzscheana em transcender os seus próprios limites, a música progressiva, rivalizou, de facto, com os clássicos.

Deitar cedo e cedo erguer para ganhar o dia [José Peixoto]

Sons

17 de Julho 1998

Novo disco de José Peixoto

Deitar cedo e cedo erguer para ganhar o dia

“A Vida de Um Dia”, título do novo álbum a solo de José Peixoto, pode ser a eternidade. O guitarrista dos Madredeus encontrou o tempo certo no diálogo da sua guitarra clássica com o silêncio de uma igreja. Em cima e para dentro. “Para o infinito que pode ser o tempo.”


Depois de “A Voz dos Passos”, editado o ano passado, “A Vida de Um Dia” é o segundo capítulo de um encontro da guitarra clássica, acústica, com um espaço de interioridade que só o recolhimento de uma igreja permite. Com José Fortes na mesa de gravação, José Peixoto aprofundou na Igreja de Cartuxa as vias desse encontro, que, antes, adquiriu sobretudo os contornos de uma experiência, como o guitarrista explicou ao PÚBLICO.
PÚBLICO – Em termos formais, este disco não difere muito de “A Voz dos Passos”, pois não?
JOSÉ PEIXOTO – Este disco acaba por ser uma espécie de prolongamento do outro. O outro surgiu como uma experiência que eu nunca tinha feito, de compor para guitarra solo, enquanto este já parte de uma certeza, de um terreno que eu conheço.
P. – Ficou, então, alguma coisa por dizer, no álbum anterior?
R. – O que ficou por dizer é que tinha, já nessa altura, mais música do que aquela que está no CD.
P. – Aproveitou alguma coisa dessa música para este novo disco?
R. – Aproveitei alguma, coisas antigas que reformulei. Mas a ideia foi ir um pouco mais longe, aprofundar algumas das ideias.
P. – Aprofundar, como?
R. – Ao nível da liberdade de composição. É um terreno um bocado subjectivo... Aprofundar no sentido de deixar de ser uma experiência, do tipo “deixa lá ver como é que funciono a compor para um instrumento solo” e já não haver dúvidas a esse respeito. Partir já com ideias mais sólidas.
P. – Fazer de seguida dois álbuns só de guitarra acústica não será, à partida, um projecto algo arriscado, e não só em termos comerciais?
R. – A guitarra é o meu veículo de expressão. O instrumento que estudei e que tem sido o meu amigo nestes anos todos. Comercialmente falando, é um facto que é um luxo eu poder fazer esta música, sem ter preocupações de vendas.
P. – Esta sua carreira a solo, com gravações em igrejas, é um escape à máquina dos Madredeus?
R. – É um projecto paralelo que já vinha de trás e que tenho necessidade de alimentar.
P. – Por que razão voltou a escolher uma igreja, a da Cartuxa, em Caxias, como local de gravação?
R. – Foi uma igreja como podia ser um outro espaço acústico. Houve a preocupação de encontrar um espaço favorável à emissão de som. A música não é mais do que ar em movimento. A vantagem de ter uma atmosfera activa, como a de uma igreja, é não ser necessário usar qualquer artificialismo. A primeira sensação que tive, das duas vezes em que entrei nesta igreja, foi o próprio som dos meus passos. É logo uma sensação de prazer que surge de forma automática. O prazer físico do som.
P. – Um prazer que tem necessariamente de ser solitário?
R. – ... Com o José Fortes, que foi uma parte essencial neste processo todo. Mas é, de facto, uma intimidade absoluta, um prazer solitário. Mas a minha natureza dá-se bem com esta situações. Estou, como se costuma dizer, a jogar em casa.
P. – Há alguma razão especial para a escolha do título?
R. – “A Vida de Um Dia” pode ser um despertar de várias maneiras. É um espaço aberto para o interior. Para o infinito que pode ser o tempo. A medida do tempo é uma coisa muito relativa. A vida de um dia pode ser um todo. Onde cabe tudo.
P. – Sente-se nesse tempo a presença, muito subtil, quase subliminar, do flamenco.
R. – Eu ouço muito flamenco. É uma expressão incrível e um tipo de música onde a guitarra cumpre plenamente. Mas não se pode dizer que tenha uma sensibilidade de flamenco. Identifico-me apenas como ouvinte. Gosto de Paco de Lucia, Tomatito, Vicente Amigo...
P. – A sua música é uma música triste?
R. – É melancólica. Solitária. Estes discos são uma espécie de auto-retratos. Acabam por ser um espelho do que eu sou.
P. – Como é que concilia o ritmo de trabalho dos Madredeus com essa sua costela de solitário?
R. – Defendo-me com a disciplina. Durante as viagens, por exemplo, para poder preservar o meu tempo e o meu espaço. Outro exemplo: a seguir aos concertos não vou jantar. Não gosto de comer nem de me deitar muito tarde. Acabo por fazer uma vida mais saudável, que me permite ter mais tempo para estudar ou para trabalhar.
P. – A guitarra eléctrica não faz parte do seu vocabulário. Porquê?
R. – Quando era mais novo tocava guitarra eléctrica. Mas a partir do momento em que comecei a estudar guitarra clássica abriu-se-me um mundo à frente que não sei se uma vida inteira chegará para o desbravar. É uma paixão. Mas também já toquei alaúde árabe...
P. – ... Sob o pseudónimo de “El Fad”. Esse outro mundo, o da música árabe, ficou para trás?
R. – Ficou para trás porque representava apenas uma determinada fase. Entretanto, vamos amadurecendo e a idade leva-nos para outros lados. Mas continuo a ouvir música da Tunísia e do Egipto, e músicos como o alaúdista Anouar Braheim.
P. – Podia perfeitamente editar os seus discos numa editora como a ECM. Gostava?
R. – Acho que sim. Aliás, tenho feito contactos com ela sempre que gravo. Mas como não tem havido nenhum “feedback”... É preciso dar tempo ao tempo. E era preciso eu ter esse tempo para me dedicar a esse tipo de contactos. Embora isso, se calhar, seja mais simples do que se imagina. A oportunidade pode surgir de repente. A ECM não é uma editora inacessível.
P. – Existe alguma estrutura especial na forma de “A Vida de Um Dia”?
R. – É como se desenhasse uma circunferência.
P. – Já se ouviu neste disco?
R. – Já. Fiquei surpreendido porque achei que estava bastante melhor do que quando o acabei de fazer. Tenho a sensação de estar agradecido a mim mesmo por tê-lo feito. Agradecido porque se não fosse eu a fazer esta música, ninguém mais a fazia.

Kreidler - Appearance And The Park

Sons

17 de Julho 1998
DISCOS – POP ROCK

Mistério no parque

Kreidler
Appearance and the Park (9)
Kiff, distri. Megamúsica


Se a intenção era construir um ambiente de fronteiras esbatidas entre a realidade e o sonho, com “Appearance and the Park”, os Kreidler conseguem completamente esse objectivo. O tema de abertura, “Tuesday”, faz-nos entrar num parque de diversões bizarras como o que os Cluster abriram ao público em “Zuckerzeit”, provavelmente o álbum mais lúdico de toda a história do krautrock, ou o que, já na década seguinte, foi reformulada por Pyrolator, em “Wunderland”. Mas “Appearance and the Park”, ao contrário do anterior álbum do grupo, “Weekend”, que mantinha uma unidade sonora, é um trabalho inquieto e impaciente que a cada momento parte em busca de novas verdades. Como fizeram os Tortoise, no recente “TNT”.
A frieza que Andreas Reihse referiu na entrevista ao PÚBLICO (03/07/98) não é tanto um resultado como um instrumento de dissecação de emoções novas que os Kreidler espalham generosamente pelos recantos mais longínquos do parque. É uma Düsseldorf misteriosa e mutante que aqui mostra os seus sonhos mais belos e obscuros. Fábrica de implantes para o cérebro, reconversores da realidade em imagens de caleidoscópio. Mas o “software” caiu nas mãos de crianças lambuzadas de rebuçado e “Appearance and the Park” faz sair do saco dos presentes o caderno que nos anos 80 levava o rótulo “Manobras orquestrais na escuridão” (“Necessity now”, junta, absurda e deliciosamente, a simplicidade “catchy” dos OMD com as avarias nos circuitos dos Oval) mas agora preenchido com as cores do milénio que há-de vir.

A saudade que veio do frio [Kreidler]

Sons

3 de Julho 1998

Kreidler passeiam pelo lado mais afastado do parque

A saudade que veio do frio

Frios mas sensíveis à saudade, os Kreidler voltam a povoar, com “Appearance and the Park”, os sonhos do pós-rock com uma actividade febril. Ou fabril. Sonham em japonês, com as máquinas dos Kraftwerk e os mistérios de Düsseldorf. Como um “haiku” a sua música vai directa ao essencial. Manipulando “a um nível abstracto” as emoções de quem a ouve.

Quando da saída de “Weekend”, álbum de estreia dos germânicos Kreidler, falámos com Stefan Schneider, também membro dos To Rococo Rot. Desta feita a conversa foi com o teclista e sintetista Andreas Reihse, um admirador de Kurt Dalhke (Pyrolator), Kraftwerk e das bandas que fazem história em Düsseldorf. Mas durante as gravações de “Appearance and the Park” os Kreidler seguiram o “método Can”.
PÚBLICO – “Appearance and the Park” é um título estranho. O parque é o mesmo que aparece na capa do álbum anterior, “Weekend”?
ANDREAS REIHSE – Sim, “The Park” faz o elo de ligação com “Weekend”. “Appearance” assinala o novo e o inesperado, também a distância relativa ao álbum anterior e algo mais de que não tivemos consciência no momento da gravação. O “e” liga o antigo ao novo, jogando com a ausência de lógica. O título procura também captar um certo mistério que paira no ar, como os “Ficheiros Secretos”.
P. – A melodia de “Tuesday” é puro Pyrolator (do ambiente de feira de “Wunderland” não dos experimentalismos de “Inland”). E nas notas de capa agradece ao próprio Pyrolator, ou seja, Kurt Dahlke, cada vez mais citado pelas novas bandas alemãs de música electrónica, dos FX Randomiz aos Schlammpeitziger. Será que ele é o elo, nos anos 80, que faltava entre o “krautrock” dos anos 70 e as actuais vagas do pós-rock e da “Electronica”?
R. – Houve quem se lembrasse de “Could it be I’m falling in love”, dos Spinners... Infelizmente “Wunderland” é o único álbum dos Pyrolator que nunca ouvi. De qualquer forma gosto do modo como ele usa melodias “naive” e um “kitsch” que é muito apelativo, como fazem os Kraftwerk. Mas há mais música importante de Düsseldorf, dos anos 80, como os primeiros Die Krupps e os Der Plan. E Holger Hiller Dorau gravou também nesta cidade. Sob a designação Deux Baleines Blanches nós próprios gravámos várias vezes nos estúdios Atatak. No ano passado gravámos o 12” “Fechterin”, que foi produzido por Kurt. Foi também Kurt que nos enviou um gravador DAT durante as gravações de “Appearance”, depois de três dos gravadores do estúdio em St. Martin terem rebentado!...
A editora Atatak é, de facto, um elo que liga um determinado tipo de “krautrock” ao som de Düsseldorf personificado pelos Kraftwerk e pelos Neu! mas também através de Michael Rother, Cluster e Harmonia, bem como dos grupos de “electronica” actuais. Também é possível perceber reminiscências de Pyrolator na cena tecno de Colónia, de bandas como os Modernist, Bionaut, Ike Ink ou Sweet Reinhard.
P. – Kurt remisturou uma faixa dos Kreidler, em “Resport”. Ficou satisfeito com o resultado total desse projecto?
R. – A princípio não. Porque me sinto mais ligado à música de dança, ao tecno ou à “house”. Teria ficado mais feliz com uma mistura desse tipo. Mas não fui eu que escolhi os autores das remisturas, à excepção de Kurt. Claro que é a minha remistura preferida. Mas acabei por reconhecer que o som está bastante consistente. Talvez não resultasse numa linha mais ortodoxa de música de dança.
P. – O som é mais importante do que a estrutura na música dos Kreidler?
R. – Detlef Weinrich e eu somos os que estamos mais conscientes do som enquanto matéria-prima. Não gostamos muito de samples porque são barulhentos, sujos e demasiado cheios de informação e de História. É muito mais fácil criar um determinado ambiente manipulando o auditor a um nível mais abstracto, jogando com memórias sonoras que se conservam no cérebro. Por isso preferimos sons puros e frios. De maneira a manter uma distância que permita uma possibilidade de acesso ao auditor completamente diferente. Não como um diário, não de uma forma egocêntrica, mas como senso-comum, pop, um modelo.

Método Can

P. – Em “She woke up and the world had changed” parece que os Cluster encontraram os New Order. É um dos aspectos mais interessantes da vossa música, a forma como combinam elementos e influências diferentes num todo que soa completamente original. Compõem em casa? No estúdio? De que modo manipulam os sons e as ideias?
R. – “Au-pair” e “Coldness”, por exemplo, foram trabalhadas em casa no meu Apple. Outras canções foram tocadas primeiro em concertos, durante um ano, numa espécie de remistura de teste, ao vivo, às reacções do público. Antes dessa fase cada um de nós leva para a sala de ensaios um “loop”, uma melodia, alguns acordes, um ritmo, uma ideia para uma linha de baixo. Depois juntamos as partes mas nunca sob a forma de improvisação. Numa última fase separamos as melhores, segundo aquilo a que chamo o “método Can”. Fazemos variações sempre tendo em mente que o resultado final deverá rondar os 4 minutos de duração.
P. – A programação rítmica de “Necessity now” é muito semelhante à de “Trans Europe Express”, dos Kraftwerk. E há sons sintéticos que lembram a fase inicial do grupo de Ralf e Florian. Quando os Mouse on Mars elogiam o álbum “Organisation”, assiste-se a uma revalorização desta fase inicial dos Kraftwerk, em detrimento da fase posterior, iniciada em “Trans Europe Express” que todos elegiam antes como percursora do electro-funk...
R. – O meu álbum favorito dos Kraftwerk é “Menschmaschine” (“The Man machine”) porque dá uma ideia bastante clara do que haveria de acontecer nos anos 80. É frio e cheio de desespero e entropia. Por vezes sinto-me deprimido quando o ouço. Não penso que os Kraftwerk sejam muito “funky”. São muito rigorosos e rígidos, tipicamente alemães, quando os comparamos com Sly & The Family Stone ou Parliament. Aprecio a sua evolução, desde o início até “Electric Cafe”. De certa forma, cada novo álbum é uma actualização do anterior. Não sei se o material mais antigo está agora mais em voga. Há quatro anos atrás, Triple-R., um dj, incluiu no seu “set” de tecno um tema de “Ralf & Florian”.
A propósito, Thomas e eu tocámos recentemente com Klaus Dinger, (Neu!, La Düsseldorf, primeiros Kraftwerk) no Japão, bem como em vários álbuns dos La!Neu?
P. – Concorda que “Appearance and the Park” é bastante mais melódico do que o seu antecessor? Por vezes soa quase aos OMD. Um passo na direcção de uma nova vaga de electropop, talvez?
R. – Bem, preferia que tivesse pensado nos The Normal, nos Human League ou nos New Order... Ou num grupo funk de Nova-Iorque, como os Liquid Liquid. De qualquer forma estamos nos anos 90 e não é nosso propósito sermos uma banda retro.

Haiku de banana

P. – Quem é Banana (!?) Yoshimoto cuja poesia é referida no álbum?
R. – É uma jovem escritora japonesa com um estilo muito fácil de leitura (ok, só conheço as traduções...) mas que é capaz de traduzir sentimentos muito profundos com um mínimo de palavras, um pouco como os haikus. Da mesma forma nos Kreidler procuramos usar sons e melodias o mais puro e simples possíveis para exprimir sentimentos como a saudade e proporcionar algum conforto, aceitando as coisas de uma forma activa e não passiva, tentando transformar as más em algo positivo para o auditor. Algo que também se encontra em “Crash”, de David Cronenberg.
P. – Detlef Weinrich também fala dessa “forma de aceitação das coisas”. Há aí alguma conotação com o zen?
R. – É sem dúvida algo japonês, mas não somos nenhuns budistas!
P. – Curiosamente parece existir uma ligação entre os músicos electrónicos alemães e o Japão. Estou a lembrar-me de Holger Hiller, que tem um álbum inteiro, “Little Present”, feito a partir de sons gravados em Tóquio. Além de que vocês agradecem a uma quantidade enorme de japoneses neste disco...
R. – Conhece “Little Present”! Brilhante! Adoro esse disco. Quando estive com Klaus Dinger em Tóquio recebi-o como presente. Fiquei muito impressionado com a cidade, com os seus sons, as cores, as pessoas, tudo. Não me lembro de alguma vez me ter sentido tão bem (soa um bocado patético, não?). A cidade tem uma vibração ultra positiva (ainda mais patético!...) que não se encontra em nenhum lugar da Europa. Fiquei com uma quantidade de amigos em Tóquio. Mas é uma cidade que transmite igualmente imagens de um desespero muito belo e puro.
P. – E a Itália? O disco tem canções chamadas “Il sogno di una cosa” e “Venetian blind”...
R. – “Il sogno...” é uma frase original de Karl Marx. Pier Paolo Pasolini usou-a como título para um dos seus livros. Por outro lado sinto que existe uma ligação qualquer entre o Japão e a Itália que não consigo explicar.
P. – Insistem em conotar os Kreidler com o conceito de “frieza”. Os novos homens-máquina?
R. – Homens-máquina, nunca! Talvez só por brincadeira é que joguemos com esse género de atitude. Sentimos mais atracção pelo escuro e pelo frio, mas também tem que existir um antagonismo. E, evidentemente, sempre uma espécie de saudade.

Genesis - Genesis Archive, 1967-75

Sons

26 de Junho 1998
REEDIÇÃO

Entre a génese e a revelação

Uma das coisas da música dos anos 70 que me fez sempre muita confusão era o facto de os vocalistas conseguirem decorar as letras de todas as canções. Reparem que não me estou a referir a cançõezecas de três minutos, mas a coisas da dimensão de “Tales from Topographic Oceans” ou “The Lamb Lies down on Broadway”, composições de hora e meia que enchiam álbuns duplos. E se ainda admito que no estúdio houvesse sempre a possibilidade de recorrer à cábula, já nos espectáculos ao vivo tal proeza me parece totalmente incompreensível.
Estou a falar disto porque dois dos quatro CD que compõem a caixa dos Genesis, agora editada, “Genesis Archive, 1967-75”, são ocupados com a versão ao vivo, na íntegra (ao todo, 103 minutos!), de “The Lamb Lies down on Broadway”, derradeiro “magnum opus” de um grupo que até essa altura esteve sempre na liderança do Progressivo britânico. Como se sabe, Peter Gabriel abandonaria logo de seguida (por razões que ele próprio explica no extenso livro que acompanha a presente edição) e os Genesis evoluiriam para o lixo “mainstream” para onde Phil Collins os empurrou a partir de então. Pois nesta gravação de “The Lamb...”, efectuada a 24 de Janeiro de 1975 no Shrine Auditorium, em Los Angeles, Peter Gabriel não se engana uma única vez, ainda que continuemos a preferir ouvi-lo contar a história de Rael na versão original de estúdio.
O quarto compacto reúne material alternativo ou inédito, na maioria recolhido do período anterior a “Trespass”, primeiro de uma série fantástica de álbuns editados com o selo Charisma. Canções da época do disco de estreia, “From Genesis to Revelation”, gravado para a Decca em 1968, com produção de XXX. São pois duas fases contrastantes as que foram arquivadas, o auge da teatralidade que caracteriza “The Lamb...” em comparação com a delicadeza depurada de pequenas historietas às quais Gabriel emprestava já a cor da sua originalidade e cujo rasto se encontraria ainda em faixas de álbuns posteriores, nomeadamente nas duas pérolas que intercalam as longas bizarrias de “Nursery Cryme”, “For absent friends” e “Harlequin”.
Encontram-se neste disco uma mão-cheia de “demos” de temas de “From Genesis to Revelation”, incluindo “She is beautiful” e “Patricia”, que dariam origem, respectivamente, a “The serpent” e “In hiding”. Há ainda uma “demo” de “Dusk”, do álbum “Trespass”, sendo o resto constutuído por “demos” de inéditos, “Going out to get you”, “Build me a mountain”, “Image blown out”, “The magic of time”, “Hey!”, “Hidden in the world of dawn”, “Sea bee”, “The mistery of the Flanan Isle lighthouse”, “Hair on the arms and legs” e “Try a little sadness”, e três temas difundidos pelo programa da BBC Nightride: “Shepherd”, “Pacidy” e “Let us now make love”.
O compacto número três inclui versões gravadas ao vivo no Rainbow Theatre, em 1973, de temas de “Trespass” (“Stagnation”), “Foxtrot” (“Supper’s ready” e “Watcher of the skies”) e “Selling England by the Pound” (“Dancing with the moonlit knight”, “Firth of fifth”, “More fool me” e “I know what I like”). Ainda os dois lados do single “Happy the man”/“Twilight alehouse” e uma versão de um 7”, não editado, de “Watcher of the skies”. O destaque vai naturalmente para “Supper’s ready”, um tema que pode ser lido como uma “trip” de ácido (assim como “The Lamb...), com a particularidade de que, nesta viagem de longa duração, o cérebro do seu autor se fundiu...) na qual Peter Gabriel se desmultiplica por diversas personagens e registos vocais. Algo que apenas se repetiria noutro “tour de force”, agora de “Selling England by the Pound”, que é “The battle of Epping forest”.
Na prática, isto significa que a presente colectânea abrange a totalidade dos álbuns gravados pela banda entre 1967 e 1975, embora num contexto diferente do original. Nesta medida, “Genesis Archive, 1967-75” constitui um documento importante e uma peça indispensável para os incondicionais do grupo. Os mais novos espantar-se-ão ao contacto com esta música que conseguiu traduzir a lógica escondida dos sonhos, materializando-os num teatro de máscaras sem paralelo na pop. Numa época em que Phil Collins não era ainda careca e Peter Gabriel não viajava em iates na companhia de Claudia Schiffer. Entre a génese e a revelação, é toda uma história de múltiplos capítulos que se desenrola do fim para o princípio, como um filme em busca da essência contida nas primeiras imagens.


Genesis
Genesis Archive, 1967-75 (8)
4xCD Virgin, distri. EMI-VC



NOTA – As notas sobre o álbum “Nothing Can Stop us”, de Robert Wyatt, publicadas na passada semana, contêm uma incorrecção e uma omissão. Assim, o tema “Grass” é da autoria de Ivor Cutler, e não de Chris Cutler. Depois, esquecemo-nos de referir um dos temas fundamentais do álbum, a versão de “At last I am free”, de Nile Rogers e Bernard Edwards, dos Chic.

30/10/2009

Ar de fole [Danças Ocultas]

Sons

19 de Junho 1998

Danças Ocultas respiram em novo disco

Ar de fole

“Ar”, segundo álbum do grupo de concertinas de Águeda, Danças Ocultas, recria as micropaisagens do universo dos foles, ao mesmo tempo que respira as altitudes cósmicas da serra. Artur Fernandes carregou no s botões para o PÚBLICO.

Compor formas de música original para concertina é o objectivo prioritário dos Danças Ocultas. Mesmo que, para tal, seja preciso inventar um instrumento novo, como a concertina baixo, e reprimir as tentações de virtuosismo.
FM – “Ar” respira ambientalismo por todos os poros...
ARTUR FERNANDES – Do título, o mais simples possível, à capa, com um mínimo de texto, a preocupação foi que a música pudesse dizer tudo a partir do elemento, o ar, que faz funcionar o nosso instrumento. Foi-se em busca de imagens que se inserissem no contexto estético abordado neste disco, esse tal ambientalismo ou paisagismo.
P. – Podemos falar de micropaisagens?
R. – Sem dúvida nenhuma. O reportório incluído tem bastantes pormenores. Poderíamos falar, quase, na teoria do caos, em que há o macropormenor, o médio pormenor e o micropormenor. Existe um balanço, um ritmo instalado e depois, aí dentro, aparece uma melodia deste, um pormenor daquele, uma resposta de um terceiro, até se chegar à densidade que procurámos para este disco.
P. – Esse trabalho exige um determinado tipo de experimentação?
R. – Seis ou sete dos temas já tinham sido tocados nos concertos. Fomos experimentando coisas mais arriscadas. Apercebemo-nos de que músicas mais densas, com mais contrapontos melódicos e informação, não eram rejeitadas pelo público. Mas no fundo o que continuamos a fazer é ir buscar aquilo que eu chamo a vontade do instrumento. Há determinados contornos técnicos dos dedos que são extremamente fáceis e que por vezes resultam em coisas absurdas mas que, se forem bem arranjadas, podem funcionar bastante bem. Arranjos que foram feitos na totalidade em oficina, por todos os elementos do grupo.
P. – Aparecem a tocar pela primeira vez uma concertina baixo.
R. – Precisávamos de ter mais notas nos graves. Ou mandávamos construir uma concertina com mais botões na mão esquerda, ou inventávamos nós uma solução. Foi o que fizemos. Juntámos duas partes esquerdas – de baixos – de concertinas e um fole maior, para poder ter mais interesse cénico. No lado que acrescentámos pusemos as tais notas que faltavam.
P. – Que fontes de inspiração jorraram em “Ar”?
R. – A grande referência á Astor Piazzolla, a quem fizemos uma espécie de homenagem no tema de abertura, “Escalada”. Outras referências importantes foram Riccardo Tesi, Kepa Junkera, John Kirkpatrick e a Sharon Shannon. Mas nunca num sentido seguidista.
P. – Todos esses nomes não dispensam, de uma maneira ou de outra, exibir o seu virtuosismo, ao contrário das Danças Ocultas...
R. – Sem dúvida. Poderá haver aí um factor genético. Por exemplo, os bascos, como o Kepa Junkera, são muito mais “virtuoses” do que os portugueses, não só no acordeão como noutros instrumentos tradicionais. Mas nós procuramos o nosso valor e não as nossas limitações. Valorizar a expressão em detrimento do virtuosismo. E virtuosismo não é só tocar depressa... Sentimo-nos bem a tocar dentro de determinada estética, a tal música paisagista, e tentamos explorá-la da melhor forma possível. De resto, tanto o Kepa Junkera como o Riccardo Tesi gostaram imenso do nosso primeiro disco.
P. – Por falar em qualidade musical e ausência de virtuosismo, o tema “Pinguim no meu jardim” tem alguma coisa a ver com o Penguin Cafe Orchestra?
R. – Tem. É um tema do Bitocas, o técnico de som do grupo, que sempre gostou muito dos Penguin Cafe. O tema é uma espécie de homenagem a uma certa forma e fazer música que é a do grupo inglês.
P. – A influência da música búlgara não é muito evidente em “Bulgar”...
R. – Sim... É uma questão de acentuações. A divisão rítmica está lá, um compasso de 7/4, no início e no fim do tema. No entanto, não quisemos acentuar demasiado para não se perder o tal lado contemplativo.
P. – O que são as ilusões de “Quatro ilusões”?
R. – São ilusões rítmicas. É uma valsa um pouco mais rápida em que, de vez em quando, o ritmo ternário se transforma em binário, passando a ser uma marcha. São quatro melodias que se vão metamorfoseando ritmicamente.
P. – Há alguma razão para continuarem a não deixar entrar mais nenhum instrumento, além da concertina, no grupo?
R. – Mas tentamos que o grupo não seja o projecto para um instrumento... A maior parte das formações instrumentais, do tipo quarteto de saxofones, quarteto de harmónicas, ou trio de cordas, baseiam o reportório em adaptações, de música clássica ou outra qualquer. Nós fazemos música nova para a concertina. Acabamos por ser um projecto mais de quatro pessoas que, por acaso, tocam o mesmo instrumento.
P. – Além da sua participação nos Sons da Lusofonia, faz também parte de outro grupo, não é verdade?
R. – Sim, os 4 Portango, em que tocamos Piazzolla. Fizemos a banda sonora do filme “Mortinhos por Chegar a Casa” [de Carlos da Silva e George Sluizer] e participámos recentemente na Cimeira Mundial de Tango.
P. – Vai ser difícil arrumar este disco nas prateleiras das lojas. “Música ambiental”, “world music”, “especial instrumentos”?...
R. – Talvez uma estante só para as Danças Ocultas. Em termos internacionais, poderá ser incluído em “world music”, embora não goste muito da designação, porque toda a música é “world”.
P. – Onde é que foi tirada a foto da capa?
R. – Num local da serra do Caramulo chamado Urgueira, no concelho de Águeda. É Portugal, como poderia ser a Colômbia ou o Tibete.

Robert é mais estranho do que Wyatt [Robert Wyatt]

Sons

19 de Junho 1998
REEDIÇÕES

Robert é mais estranho que Wyatt

Robert Wyatt
Rock Bottom (10)
Ruth is Stranger than Richard (8)
Nothing Can Stop Us (8)
Old Rottenhatt (9)
Rykodisc, distri. MVM


“Rock Bottom” é um dos grandes discos da história do rock. Apesar de pouco ou nada ter a ver com o rock. Apesar do título. É uma daquelas obras únicas e irrepetíveis, sem ascendência nem descendência visíveis, ainda que “Shleep”, o mais recente do autor, o revisite, filtrado pela distância.
Corria o ano de 1974. O Progressivo encontrava-se no seu esplendor máximo enquanto na editora Virgin se acolhiam os nomes mais importantes – e que então soavam estranhos – exteriores ao movimento: Henry Cow, Hatfield and the North, Gong, Faust, Gilgamesh, Lady June, Slapp Happy, Tangerine Dream, Klaus Schulze, entre outros.
Robert Wyatt saíra dos Soft Machine logo a seguir à gravação do seu volume “4”, desagradado com a orientação exclusivamente jazzística do grupo. Como já tinham feito antes Daevid Allen e Kevin Ayers, dois dos excêntricos mais iluminados da pop inglesa com sede em Canterbury, ainda que o primeiro fosse australiano. O aviso já fora feito na obra-prima “Third”, onde Wyatt assinava um lado inteiro de pop lunar (ou de lunático) numa longa canção à qual dera o título de “The moon in June”.
Mas para Robert Wyatt (como para Allen e Ayers) a música pop foi sempre encarada como um veículo capaz de transportar e conter todos os desequilíbrios e direcções divergentes da sua personalidade. Nos Matching Mole encontrara o então ainda baterista esse veículo, gravando mais dois álbuns imprescindíveis, “Matching Mole” e o genial “Little Red Record”.
Quando Wyatt preparava o terceiro disco dos Mole (com um novo elemento, o teclista Francis Monkman, vindo dos Curved Air) dá-se o acidente. Uma festa fatídica. A queda de um quarto-andar. Paralisia dos membros inferiores. A noite descia sobre Robert Wyatt.
“Rock Bottom”, o fundo, é também a salvação do músico que faz deste álbum um manifesto da sua dor. A abertura do disco, “Sea song”, é uma luz velada em que a graça se confunde com a mágoa mais profunda numa espécie de ressaca metafísica. O mundo, os sons e a alma do músico desaceleram até ao espanto estremunhado. “When you´re drunk you´re terrific/When you´re drunk I like you mostly/Late at night, you’re quite alright./But I can’t understand/The different you in the morning/When it’s time to play at being/Human for a while/Please smile” canta Robert Wyatt naquela que será uma das mais tocantes letras de canção de sempre. A música é uma neblina de notas de piano e pequenas percussões à deriva, varridos pela ventania da madrugada de um sintetizador. Um limbo de sentimentos molhados pelo sal e pelo álcool que ardem como um sol gelado antes de se diluírem no oblívio. “A last straw” e “Little red riding hood hit the road” prolongam esse estado de incredulidade e folia interior, fora da realidade, no único lugar onde se torna possível suportar, mas não olhar de frente, o sofrimento. Depois é o mergulho na loucura. “Alifib” e “Alife” descem, descem, descem sempre até atingirem o fundo negro onde se reflectem as estrelas do céu. Uma palavra, “alifib” (Alfreda Benge, “Alfie”, a mulher sul-africana com quem casou nesse mesmo ano) vai sendo repetida obsessivamente, a voz desagregando-se aos poucos numa respiração húmida. A lógica desaparece. Wyatt estende as mãos e murmura coisas incompreensíveis onde estão aprisionados todos os sentidos. “Not nit not/nit no not/Nit nit folly bololey”, balbucia. A luz desaparece numa última vertigem para reaparecer no tema final, “Little red Robin Hood hit the road”, através da janela de um asilo. Robert Wyatt, ele próprio e a sua máscara, pode enfim descansar, dobrado na posição fetal. A voz de barítono demente, de Ivor Cutler, declama sobre uma concertina as palavras da redenção. A alma de Wyatt, essa já voava, como a do índio de “Voando sobre um Ninho de Cucos”. E a voz do fundo, do muito fundo, de Cutler, a pôr um ponto final na agonia com uma gargalhada cruel: “Now I smash up the telly and what´s left of the broken phone”. A criança partira para longe. A criança partira o brinquedo.
No ano seguinte, 1975, “Ruth is Stranger than Richard”, dividido num lado “Richard” e num lado “Ruth” (a presente reedição troca a ordem do vinilo original) respira já fora do poço. É um álbum de pedaços soltos, de desperdícios de jazz e música ambiental, com hinos pelo meio, ritmos africanos e uma versão de “Song for Che” de Charlie Haden. Fred Frith, Brian Eno, Mongezi Fesa, John Greaves, Bill MacCormick (ex-Matching Mole) e, sobretudo, o fabuloso saxofonista Gary Windo (já falecido) são alguns dos participantes de um álbum cuja leveza contrasta violentamente com a claustrofobia emocional de “Rock Bottom”.
O regresso à terra das coisas concretas, pela porta da ideologia, acontece com “Nothing Can stop us”, de 1978. Capa verde e vermelha com a estatueta de um operário a enfeitar a dianteira de um Rolls-Royce. Wyatt entrara nessa altura para o Partido Comunista britânico. Mas se este trabalho representa o pensamento de um homem de Esquerda, nele está também presente uma ironia mordaz e uma lucidez que o impede de ser panfletário, em deliciosas cançonetas de intervenção como “Born again cretin” e “Stalin wasn’t stallin’” (gravada pela primeira vez em 1943, pelo Golden Gate Quartet). Ao lado do hino do operariado, “Trade union”, e da canção de luta latino-americana (“Caimanera” e, de Violeta Parra, “Arauco”) encontramos uma fabulosa parceria com Elvis Costello, “Shipbuilding”, uma versão tocante de “Strange fruit” e um momento de obscuridade, “Grass”, assinado por Chris Cutler, cuja costela, também esquerdista, sempre se resolveu, ao contrário de Wyatt, numa arquitectura hermética que começou a ser edificada nos Art Bears.
Ainda marcado pelas preocupações políticas, “Old Rottenhat” livra-se, todavia, da excessiva carga partidária que envolve “Nothin Can Stop Us”. Aqui reencontramos as grandes canções, onde o individual e o colectivo se confundem, num álbum de fôlego marcado pela electrónica e pelas percussões sintéticas. “United states of Amnesia”, “Speechless”, “The age of self”, “The british road” ou “Mass medium” aliam a acutilância das letras (reduzidas ao essencial, em “slogans” coloridos por um humor surrealista) enquanto “East Timor” estende o dedo de acusação sem fazer uso de qualquer espécie de metáforas. Limpo de retórica, densamente povoado de sons e achados melódicos, “Old Rottenhat” é ainda o álbum em que a voz de Robert Wyatt evidencia força, clareza e extroversão, quando antes se refugiava nos círculos impenetráveis do seu “scat” pessoalíssimo. Era ainda a saída definitiva do poço que lhe permitiria entrar nos anos 90, já não como a larva disforme mas como a borboleta que voa em liberdade, em álbuns como “Dondestan” e “Schleep”, de uma vitalidade surpreendente para este homem que, como Orfeu, passou pelo inferno e sobreviveu.
As presentes reedições são remasterizadas (sem que se note uma melhoria espectacular do som). “Rock Bottom” e “Ruth is Stranger than Richard” trazem pela primeira vez impressas as letras. A capa de “Rock Bottom” foi modificada, apresentando agora um novo desenho da autoria de Alfreda Benge, enquanto o enquadramento e as cores de “Ruth” foram ligeiramente alteradas.


NOTA (Sons, dia 26 Junho) – As notas sobre o álbum “Nothing Can Stop us”, de Robert Wyatt, publicadas na passada semana, contêm uma incorrecção e uma omissão. Assim, o tema “Grass” é da autoria de Ivor Cutler, e não de Chris Cutler. Depois, esquecemo-nos de referir um dos temas fundamentais do álbum, a versão de “At last I am free”, de Nile Rogers e Bernard Edwards, dos Chic.

Músico português mutante [Nuno Rebelo]

Sons

12 de Junho 1998

Músico português mutante

“Azul Esmeralda” foi composto por Nuno Rebelo para uma coreografia de Paulo Ribeiro. Um trabalho de gravação e montagem de solos tocados ao vivo, em tempo real, por outros músicos, que resultou no álbum “mais acústico” de sempre do seu autor – o “Fred Frith português”, como já lhe chamou Chris Cutler.

O contrabaixo de Carlos Bica, o trombone e a tuba de Greg Moore e a bateria de Carlos Franco funcionaram como “input” sonoro de “Azul Esmeralda”, a partir do qual Nuno Rebelo arquitectou uma música inclassificável que prolonga algumas das propostas já enunciadas no anterior “M2”. O compositor falou com o PÚBLICO sobre algumas das técnicas usadas, das dificuldades que teve em trabalhar com Philippe Genty e da próxima apresentação na Expo de um espectáculo de “guitarra portuguesa mutante”.
PÚBLICO – “Azul Esmeralda” é bastante menos electrónico que “M2”...
Nuno Rebelo – Não é muito diferente de “Sábado 2”, do álbum anterior. A outra parte desse disco, “Minimal show”, sim, era mais à base de samplers e electrónica. Neste novo disco voltei a trabalhar como em “Sábado 2”, com gravações em disco rígido. Em “Sábado 2” aparecia em destaque a minha guitarra eléctrica e o saxofone do Paulo Curado. Desta vez gravei três músicos que vieram tocar a minha casa, mais ou menos 40 minutos cada um, em solo, para o gravador, sem ouvirem base nenhuma e sem eu lhes dizer ou escrever absolutamente nada.
P. – Trabalhou dessa maneira pelo gosto do aleatório?
R. – Foi um estímulo. Há um primeiro estímulo que é o bailado em si, que me dita ritmos, danças, enfim, que me estrutura a música. Depois há o estímulo do próprio material que me é dado pela identidade de cada um dos outros músicos. Sem eles haveria menos surpresa.
P. – Mas também utiliza sons como grunhidos de “javalis no Jardim Zoológico de Lisboa” ou de “crianças a cantar e a brincar em Santa Maria do Sal”. Foram trabalhados da mesma maneira?
R. – Quase nunca se trata de samplagens, de sons gravados no sampler e tocados no teclado, mas de gravações em DAT que eu depois monto. Resultou no mais acústico de todos os meus trabalhos.
P. – Por falar em trabalho acústico, em que ponto se encontra o seu projecto de “guitarra portuguesa mutante” que vai apresentar na EXPO?
R. – É guitarra portuguesa preparada, amplificada, processada... Trabalhei este instrumento em 93, quando fiz uma série de composições a solo que toquei ao vivo numa ou outra ocasião. Um desses temas saiu na colectânea do Rui Eduardo Paes na Ananana, “No Way out”, tirado de um concerto meu em Tavira. Depois disso tenho usado esse instrumento esporadicamente. Agora no contexto do festival Mergulho no Futuro da EXPO 98 vou fazer um concerto com um “ensemble” de guitarras mutantes. Dois guitarristas a tocar guitarra portuguesa de uma forma convencional, com a guitarra ao colo mais os quatro elementos dos Tim Tim por Tim Tum, cada um com duas guitarras portuguesas montadas em tripés, que irão ser tocadas de várias maneiras, com um arco de violino ou percutidas. Eu vou tocar a harpa de um piano, as cordas do piano mas sem o piano.
P. – Ainda a propósito da EXPO, como é que aparece a fazer a música para o espectáculo “Oceanos e Utopia” do Philippe Genty?
R. – Recebi um telefonema da produção portuguesa, a pedir-me uma cassete para mostrar ao Philippe Genty. Penso que ele ouviu outras, de outros músicos portugueses. Gostou do meu trabalho e quis fazer o espectáculo comigo. Mas não foi um trabalho fácil. Ele não estava nada familiarizado com o meu universo musical e estava sempre a mostrar-me coisas que têm a ver com o Philip Glass ou com o Michael Nyman, com as quais, sinceramente não tenho nada a ver e que não quero, de modo algum, imitar.
P. – Mas o trabalho acabou por ser feito. Com cedências da sua parte?
R. – Não, tive dificuldades no sentido em que para cada cena eu apresentava uma proposta, ele dizia que não gostava, eu apresentava outra, de que já gostava menos, e outra ainda de que gostava ainda menos, e ao fim da quarta ou quinta proposta ele acabava por dizer que a primeira de todas é que afinal estava bem! Ou seja, as minhas propostas iniciais acabaram por ficar mas este processo todo causou-me um tal desgaste que até acho que não as desenvolvi como poderia ter desenvolvido. Há muita gente que me vem dar os parabéns por este trabalho mas penso que poderia ter ficado melhor.
P. – Chris Cutler chamou-lhe o “Fred Frith português”. A comparação lisonjeia-o ou irrita-o?
R. – Sendo um dos músicos que mais me influenciou, é óbvio que reconheço que grande parte da minha personalidade musical se deve à grande quantidade de música que ouvi, e continuo a ouvir, de Fred Frith. Mas entre mim e ele existe um abismo. Falei uma vez com ele quando cá veio tocar com os Naked City, ofereci-lhe uma cassete com coisas que eu tinha na altura, em 1990, com os Plopoplot Pot e ele ofereceu-me um CD dele. Foi uma troca de galhardetes...
P. – Continua a ter uma projecção mediática muito discreta, dando a ideia de que passa o tempo todo a compor e a gravar música em casa. É assim?
R. – Não tenho ninguém que trabalhe a minha imagem, enquanto os outros grupos, nomeadamente ao nível da pop, têm os promotores, os “managers”, essas coisas todas e tal que mandam artigos para a imprensa. Por outro lado também eu próprio não perco muito tempo com isso. A Internet neste momento ajuda-me um bocado a esse nível. Cada vez tenho uma lista de e-mail maior. Sempre que faço alguma coisa nova mando informação para a lista inteira, mantendo as pessoas interessadas a par do meu trabalho. Além de que a minha própria página na Internet está sempre acessível. (http://www.ip.pt/nuno-rebelo)

Eliza Carthy - Red Rice

Sons

5 de Junho 1998
WORLD

Arroz com bicho

Eliza Carthy
Red Rice (7)
2xCD Topic, distri. Megamúsica

Saudado pela crítica estrangeira, nomeadamente pela Folk Roots, como “subtilmente progressivo”, “com um sentido de perigo” e um “marco”, “Red Rice” é, quanto a nós, uma desilusão. Compreende-se o cuidado. Eliza é filha de quem é (Martin Carthy e Norma Waterson), os seus anteriores trabalhos, nomeadamente com Nancy Kerr, “Shape of Scrape”, e o mais recente, com os Kings of Calicutt, eram bons, mas, acima de tudo, “Red Rice” é um daqueles objectos feitos, à partida, para impressionar.
O objecto em questão é uma embalagem composta por dois CD mas que não se pode considerar um duplo-álbum, apesar de, em termos gráficos, se ter procurado uma unidade de conceito. São antes dois álbuns que procuram apresentar duas facetas distintas da violinista, cada um com músicos e uma abordagem estética diferentes. “Rice”, onde Eliza aparece ruiva, é um álbum de música tradicional, no sentido académico do termo, puramente acústico, que não desce abaixo do nível atingido em “Heat, Light and Sound”. As “boxes” de Saul Rose, a guitarra acústica e o bouzouki de Ed Boyd, juntamente com os misteriosos Billericay e Thorngumbold Fontenot e as participações esporádicas de mais um elemento do clã Waterson, Eleanor Waterson, voz, e de Lucy Adams, que faz um pezinho de “clog dancing” num dos temas, conferem a “Rice” um tom amigável, entre as danças “barn” e “morris”, demonstrações de violino (“Haddock and chips”) e desempenhos vocais que lembram, nalguns casos, Shirley Collins.
Mas é no reverso da medalha que as coisas se complicam. “Red” (com Eliza de madeixas louras) pretende ser o passo revolucionário que o álbum com os Kings of Calicutt já prenunciava, acabando, no entanto, por ser um inesperado trambolhão. Além do violino, Eliza toma a seu cargo o acordeão e os teclados, contando ainda com um grupo formado por Martin Green, no acordeão e piano, Barnaby Stradling, no baixo, percussão e Moog, Sam Thomas, na bateria, percussão e Moog, Olly Knight, na guitarra eléctrica e da dupla Shack & Paul, nas programações. Rory McLeod participa com a sua harmónica, como convidado, no título tema, um atropelo de “drum ’n’ bass” que sintetiza bem o espírito do álbum. Não é, no entanto, nos aspectos estilísticos que “Rice” falha, ainda que o tal “sentido de perigo” a que a Folk Roots se refere não chegue aos calcanhares, por exemplo, do radicalismo de um Martyn Bennett que em “Bothy Culture” assume na íntegra os riscos de uma “tecno folk” no mais puro espírito “rave”.
Em “Red” – que inclui versões de “Walk away”, de Ben Harper e do instrumental “The stacking reel”, de Kathryn Tickell – há um uso discreto, num par de temas, do “reggae”, aflorações suaves de jazz, rock e “dub”, nada que não tenha sido já tentado noutras paragens com resultados bem mais satisfatórios, sobretudo na Escócia, por gente como os Shooglenifty, Burach, Tartan Amoebas ou Peatbog Faeries. O que deita tudo a perder não é tanto a “ousadia” em si, mas o modo hesitante como Eliza a põe em prática. Sente-se que a confiança não foi total, soando a música como experimentação pela experimentação, numa ânsia da autora em capitalizar sobre um estatuto de “inovadora” que lhe foi, talvez prematuramente, atribuído. Eliza Carthy terá sentido a pressão, obrigando-se (ou alguém que a terá obrigado...) a um trabalho cuja envergadura parece, para já, não estar à altura de poder responder. Percebe-se o desejo de ser diferente mas não com que finalidade. Por outras palavras, Eliza Carthy sai de um lugar para ir para lado nenhum. Depois, se o objectivo era a transgressão e a subversão das regras, porquê gravar o disco tradicional, quando o efeito seria, em teoria, muito mais forte, se apenas se tivesse concentrado em “Red”. Há ainda outra coisa, esta mais grave. Em “Red” Eliza Carthy dá a imagem de uma cantora medíocre, sem colocação de voz, afinando com dificuldade, trémula, como que tolhida pelo medo. Só um estado de dúvida justifica que em “Rice” se transfigure ao ponto de parecer outra cantora, com a voz a afirmar-se orgulhosamente, sem rede, num tema como “Benjamin bowmaneer”. Até o violino cresce de forma assustadora, liberto do espartilho de linguagens rítmicas para as quais Eliza não estará, por enquanto, totalmente à vontade. É difícil dar uma só classificação a “Red Rice”. Atribuímos “8” a “Rice” e “5” a “Red”. A diferença entre arroz-doce e arroz com bicho.

23/10/2009

"Não fazemos 'apartheid' entre o Norte e o Sul" [Frei Fado D'El Rei]

Sons

29 de Maio 1998

“Não fazemos ‘apartheid’ entre o Norte e o Sul”

Na Lua procuraram os Frei Fado d’el Rei a dama que iluminasse com o seu sorriso a música do novo álbum do grupo, “Encanto da Lua”. Lua cheia, lua lisa, lua sorridente. Eles acham que não e defendem o direito à loucura. Mas a Idade Média que cantam não é propriamente a idade das trevas. Haja luz.

Carla Lopes e Quico, respectivamente vocalista e teclista e autor das programações dos Frei Fado d’el Rei, defenderam diante do PÚBLICO a sua causa. Estão longe dos Madredeus e de uma pose que apenas apela à serenidade, garantem.
PÚBLICO – A quem se deve a temática lunar deste vosso novo trabalho?
QUICO – Ao José Martins (baixo e bandoloncelo), que é o elemento mais sonhador do grupo. A ele se deve a pesquisa de textos e o nome do álbum.
CARLA LOPES – O título-tema fala do encanto do Sol pela Lua. O contraste entre a noite e o dia. Não sei se é uma Lua demasiado bonitinha, como escreveu na crítica ao disco...
P. – Não acham então que é uma Lua bastante calma e sem grandes relevos? Ao nível da produção, por exemplo.
Q. – Mesmo ao vivo, o grupo faz este tipo de som, a base são duas guitarras de nylon, um baixo acústico e percussão. Como teclista, nunca poderia fazer nada agreste, tinha de ser algo que encaixasse. Não há propriamente no disco um trabalho de produção, de limpeza ou de limagem de arestas. Num tema como “Encanto da Lua” não há, de facto, picos, é uma coisa muito polida e planante. Mas tenho que reconhecer que por mais que grave, os sons gravados não são a mesma coisa que os sons feitos ao vivo. E este grupo, ao vivo, tem outra vida.
C.L. – Há músicas que não demonstram essa calma, como a “Bailia de Vigo”, que tem muita vivacidade e bastante percussão. Está cheia de energia. Ao vivo ainda se nota mais.
P. – De que forma estabeleceram a vossa relação com a Idade Média?
Q. – Foi, uma vez mais, através do José Martins, que tem uma ligação grande a esse tipo de música, assim como também é um fã dos Dead Can Dance. E de Pedro Caldeira Cabral e dos La Batalla. É algo que nos toca. Eu também sou um bocado apaixonado por essa área e reconheço os estilos, enquanto harmonia no tempo. “Mediantal”, por exemplo, é um tema épico, gótico à maneira dos Dead Can Dance.
P. – A gaita-de-foles de Amadeu Magalhães, dos Realejo, traz a vertente celta. É outra das vossas ligações?
Q. – Sim, tocar gaitas sintéticas não é propriamente a nossa ideia...
P. – E a presença da convidada galega, Uxia?
C.L. – É uma bonita voz. O tema em que canta, “O anel do meu amigo”, pertence ao cancioneiro galaico-português, a letra é em galego.
Q. – Sou amigo da Uxia. Assim como também já trabalhei com os Vai de Roda, em tempos. A verdade é que andamos sempre entre Portugal e a Galiza. O Porto, o Norte, a Galiza, está tudo misturado.
P. – O que não impediu de também convidarem dois homens do Sul, Vitorino e Janita Salomé...
C.L. – Porque algumas músicas têm muito a ver com o Sul, com a parte árabe de Portugal. Não fazemos “apartheid” entre o Norte e o Sul... Pegamos e ligamos influências de vários sítios, dos celtas aos árabes.
P. – São um grupo de fusão?
Q. – Não propriamente. Conseguimos sempre sentir as raízes da música, popular ou outra qualquer.
C.L. – O conceito do grupo passa por esse agarrar em diversas influências. Por exemplo, no outro disco, havia alguma mistura com o fado ou com o flamenco. Agora inflectimos noutras direcções.
P. – Têm sido frequentemente comparados com os Madredeus, embora este disco marque um afastamento em relação a eles. Essa comparação prejudica-vos?
C.L. – As pessoas fazem essa relação talvez pela afinidade de instrumentos, mas quando ouvem o disco ficam espantadas com a diferença. E temos percussão, um trunfo nosso, por assim dizer.
P. – Os Frei Fado d’el Rei são um grupo discreto de que só se ouve falar quando sai um novo disco. A que se deve tanta discrição?
Q. – Somos um grupo complicado, em termos do tempo de que cada elemento dispõe. Conseguimos uma disciplina engraçada, ensaiamos religiosamente duas vezes por semana. Mas não podemos vir todos a Lisboa, não podemos tocar todos os dias da semana. É complicado.
C.L. – Eu acho que é por outras razões. Não fazemos uma música consumista. Se calhar não tem passado na rádio tanto como nós gostaríamos que passasse. Mas as pessoas que nos ouvem nos concertos ficam a gostar bastante. E voltam sempre.
P. – Finalmente, o que vos chocou mais quando caracterizámos a vossa música como “bonitinha”, pretendendo falar de uma beleza apenas superficial?
C.L. – O sarcasmo...
Q. – O álbum tem algumas coisas muito profundas. Uma das preocupações que tenho com este grupo é manter uma sonoridade rude. Se as guitarras estão desafinadas, muitas vezes vão desafinadas para a gravação. Sinceramente, estou cansado dos discos “perfeitos”.

Válvulas de escape [Electrónica]

Sons

29 de Maio 1998
DISCOS - ELECTRÓNICA

Válvulas de escape

“Another Fictionalized History” reúne “singles”, lados B e alguns EP dos Jessamine, uma das bandas de pós-rock da primeira geração. Música de extraordinária densidade tímbrica, resultante da mastigação de sonoridades ultra-analógicas algures entre os delírios de um amplificador a válvulas e um avião de carga em queda livre. As guitarras, amassadas ao meio do conglomerado de lataria, contrastam com a suavidade da voz de Dawn Smithson. Os Jessamine têm, além disso, padrinhos de peso: os Suicide, de quem, a abrir o disco, repescam “Cheree”, e os Silver Apples (grupo que, em 1968, antecipava precisamente os Suicide, com Simeon Coxe a fazer literalmente explodir o seu sistema de osciladores acoplados), numa versão de “Oscillatons”. Também disponível está o álbum de estreia dos Jessamine – mais do tipo vai ou racha, cúmplice da brutalidade pós-punk –, “The Long Arm of Coincidence”. (Histrionic, import. FNAC, 7).

O disco que vai rebentar mais do que os ouvidos até mesmo as colunas de som é “Import/Export”, dos Genf, uma orgia de baixas frequências, gravadas nos estúdios dos Can por René Tinner, que empurra a gravidade dos Ui para os patamares inferiores do Inferno. Não há “drum’n’bass” que resista a instintos tão baixos. Quando muito, “bass ’n’ bass”... (Compost, distri. Megamúsica, 7).

Mark Nelson é um dos elementos dos Labradford que no seu projecto a solo, Pan.American, se demarca da sua banda. “Pan.American” experimenta com subtileza o tecno ambiental e o “trip-hop”, numa base igualmente contemplativa, mas onde latejam sonoridades por vezes próximas dos Biosphere. (Kranky, distri. MVM, 7).

Para os lados do ambientalismo, sinónimo de paisagens inóspitas e de explorações de risco, os Visna Mehedi Ensemble propõem, em “Unintentional Beauty”, a visita a uma galeria de quadros abstractos pintados com a paleta étnica de Robert Musci (um dos elementos do “ensemble”), o cavalete conceptual de John Cage e o pincel acusmático de Jocelyn Robert ou de Steve Moore, com alçapões para o “hip-hop”. (Lowlands, distri. Ananana, 8).

Roberto Musci (será preciso lembrar o trabalho precioso que tem desenvolvido com Giovanni Venosta?) tem a partir de agora disponível o seu trabalho a solo, “The Loa of Music”, de 1983, percursor da obra-prima “Water Messages on Desert Sand”. Inspirado nas máscaras, nas invocações e nos rituais curativos vodu, o álbum, reintitulado “Debris of a Loa”, inclui um tema de homenagem a Harry Partch, fusões de samplers com detritos étnicos de proveniência suspeita e um disco inteiro de bónus, “Umi – The Sea”, gravado entre 1993 e 1997, de parceria com Claudio Gabbiani, guitarrista e manipulador de samplers e fitas magnéticas. (Lowlands, distri. Ananana, 8).

Os amantes da excentricidade têm a partir de agora acesso, embora pela porta de saída, a um dos primeiros discos distribuídos pela Recommended, “The Way Out”, de L. Voag. Voag é um maluco que junta o gosto pela anedota de Ivor Cutler, o ska andróide, a excentricidade electrónica de Ron Geesin, o prazer das construções mongolóides dos Renaldo & The Loaf e o parasitismo jazzístico de David Garland. Um “cocktail” de surpresas que não desagradará a quem se deliciou com a descoberta de Fuschimushi Math-Ice. A par de uma faixa de silêncio, para descansar, há ainda a inclusão do EP “Move”. (Alcohol, distri. Matéria Prima/Ananana, 8).

O rock alemão continua a estender os seus tentáculos. Quando saiu já o novo dos Kreidler, entram em cena os Schlammpeitziger, com “Spacerokkmountainrutschquartier”, uma colecção de referências e citações ao passado. Os Schlammpeitziger refazem a fábrica de brinquedos eléctricos de “Zuckerzeit”, dos Cluster, em temas que parecem ter sido compostos pela dupla germânica, como “Bienenkopfkoobgeflecht” e “Discoboingbeach” andam no carrossel mágico dos Harmonia, numa aproximação mais do que evidente, em “Honkytonkschlickummpittz”, e acompanham a corrida dos Neu!, no título-tema. Como passatempo, descubram onde se encontra escondida a fachada de “New Age of Earth”, de Ashra/Manuel Göttsching... Depois do reagrupamento dos genuínos krautrockers nos La! Neu? e nos Space Explosion, e das ressurreições dos Faust e dos Amon Düül II, os Schlammpeitziger são portadores tardios do facho que conseguiram capturar a substância dos mestres e as formas arquetípicas dos anos 70. Não fica mal arrumá-los ao lado dos clássicos. (A-Musik, distri. Matéria Prima/Ananana, 8).

Outra página digna da ilustre ascendência do “krautrock” foi escrita por Schneider TM, alter-ego de Dirk Dresselhaus (cujo rosto, curiosamente, é parecidíssimo não com o de Florian Schneider, mas com o de Ralf Hütter, outro Kraftwerk…), que apresenta em “Moist” as suas palpitações electrónicas instaladas entre os Mouse on Mars e os To Rococo Rot, entrando tanto pelos territórios da electrónica “suja” de David Linton ou dos Art Barbeque como na electropop dos OMD. Uma das influências que agora emerge no pós-rock alemão, os Pyrolator (Kurt Dahlke, o qual começa a ser citado nas capas com alguma frequência) emerge em “Camping”. (City Slang, distri. Música Alternativa, 8).

Os F. X. Randomiz, também alemães, logram em “Goflex” fazer a síntese da música programática elevada ao grau lógico mais elevado de uns Oval ou de uns Lan, com o mesmo tipo de humor tecnológico de Chris Burke (de “Idioglossia”) e um swing electrónico que não se encontrava desde os primeiros Yello ou dos... Pyrolator. Se os Tone Rec advogam os prazeres do sado-masoquismo, através da chicotada, os F. X. Randomiz cultivam o epicurismo da repetição e o fetichismo dos computadores. (A-musik, distri. Matéria Prima/Ananana, 8).

Reedição de maior importância é a de “Outside the Dream Syndicate”, de Tony Conrad com três músicos dos Faust, Werner Diermeier, Jean-Hervé Peron e Rudolf Sosna, gravação de 1972. Tony Conrad, compositor e violinista, hoje recuperado pelas falanges do pós-rock, fez parte do “Teatro de Música Eterna” de La Monte Young, mas foi sempre personagem malquerida entre os minimalistas. A sua posição, de um anti-academismo ferrenho, a par da rudeza de meios de que sempre deu mostras, chocava com as ambições do grupo. A reedição recente de uma caixa contendo a totalidade das suas composições minimalistas do princípio dos anos 60, voltou a repor algumas interrogações, reposicionando a obra deste americano no seio do movimento. O encontro de Conrad com os Faust, então uma autêntica erupção de novidade nos meios pop vanguardistas da Europa, processou-se por via do produtor e descobridor do grupo, Uwe Nettelbeck, constituindo uma das primeiras edições da editora Caroline, então subsidiária da Virgin. “Outside the Dream Syndicate” está para o minimalismo como “Metal Machine Music”, de Lou Reed, está para o rock. Para muitos a audição das duas faixas que fazem parte da versão original em vinilo, “From the side of man and womankind” e “From the side of the machine”, era e continua a ser insuportável. São duas procissões intermináveis (26 minutos cada) de uma só nota e uma só batida (imagine-se “It´s a rainy day, sunshine girl”, dos Faust, passado por um rolo compressor), que procuram desenvolver e transcender o conceito de monotonia, tomando como base notações matemáticas pitagóricas e o transe da música indiana, para chegar a uma inversão da “dream music” profetizada por La Monte Young. Aos dois temas originais, Tony Conrad acrescentou para esta reedição um terceiro, “From the woman and mankind”, como que a estabelecer uma simetria capaz de tornar o seu sonho num “loop” de tortura universal. E, no entanto, ficamos pregados a esta medida que faz do nada o infinito. (Table of Elements, import. Virgin, 8).