31/12/2008

Depeche Mode - Ultra (7)

Pop Rock

4 Abril 1997

DEPECHE MODE
Ultra (7)
Mute, distri. BMG

Da onda “electropop” que assolou as Ilhas Britânicas nos anos 80, composta por grupos como os Human League, Tubeway Army, Berlin Blondes, Yazoo, Blancmange, Soft Cell, Depeche Mode e Orchestral Manoeuvres in the Dark, sobreviveram apenas os dois últimos, à custa de uma sucessão de reciclagens inteligentes, ainda que, nalguns casos, oportunistas.
Na prática, tanto os OMD como os Depeche Mode andaram, quase sempre, a reboque das diversas tendências da música de dança que foram emergindo ao longo da última década. Curiosamente, porém, assiste-se hoje a um revisionismo do “electropop”, revalorizando-se uma estética que, na primeira encruzilhada com que se deparou, na sua geração original, derivou para dois extremos que não poderiam ser mais divergentes: a pop sintética e plastificada para consumo adolescente e a música industrial, que por sua vez se desmultiplicou em vários movimentos.
Esta valorização está na base do retorno a algumas das premissas estéticas originais do movimento, por parte dos OMD e dos Depeche. Os primeiros recuperaram o seu lado mais espacial e psicadélico no álbum do ano passado, “Universal”, os Depeche Mode, neste seu novo trabalho, incorporando de forma perfeitamente coerente as melodias pop que sempre os caracterizaram, num formato heterogéneo que desloca subtilmente a rítmica do “trip hop” para os domínios mais adocicados do grupo.
No capítulo dos efeitos especiais, “Ultra” está saturado de pequenos e grandes achados, nomeadamente nas introduções dos 11 temas, onde David Gahan, Andrew Fletcher e Martin Gore ensaiam, com gozo óbvio, novas combinações da tecnologia computorizada com a estrutura da canção pop. Afirmado este gosto experimentalista – assumido sem rodeios no belíssimo e sombrio instrumental “Jazz thieves” –, que, de resto, nunca abandonou os Depeche Mode e, ainda hoje, mantém toda a sua premência em álbuns como “Construction Time Again” e “Black Celebration”, sínteses do “electropop” com o industrial, o trio desfaz-se em vocalizações de uma simplicidade desarmante.
Próximos da claustrofobia Trickyana no tema de abertura, “Barrel of a gun”, próximos do pós-rock em “The Bottom Line” (com a participação do baterista dos Can, Jaki Liebezeit) ou na descompressão, talvez excessiva, do último, “Insight”, um aceno aos Tears for Fears de “Shout”, os Depeche Mode alargam a sua mensagem de estetas divertidos que pretendem fazer drama, trocando o seu papel de bebés Kraftwerk pelo de adultos armados de ironia, adeptos do “glamour” eléctrico do final do século.

Emma Junaro - Canta A Matilde Casazola: "Mi Corazón En La Ciudad"

POP ROCK

9 Abril 1997
world

Emma Junaro
Canta a Matilde Casazola: “Mi Corazón en la Ciudad”
RIVERBOAT, DISTRI. MVM

Confessamos que a música sul-americana não faz parte do nosso “top” de preferências. A combinação das composições de Matilde Casazola com a voz de Emma Junaro, duas bolivianas de gerações diferentes, abalou as nossas convicções e o gosto relativos à matéria. Por exemplo, a canção número três, “De regreso”, tem o que habitualmente associamos à música andina, com as flautas de Pan, a “quena” e o “charango”. Mas as entoações de Emma acrescentam-lhe algo mais, um registo indefinível cujo segredo escapa a quaisquer conotações regionais.
Emma Junaro é considerada uma das vozes actuais mais importantes da Bolívia, inspirada na música tradicional do seu país e na “nueva cancion” e “Mi Corazón en la Ciudad” é o terceiro álbum da sua discografia, gravado no Uruguai após um período de estudo com o seu professor de canto, Nellie Pacheco. A decisão de interpretar apenas as canções de Matilde Casazola – compositora, poetisa, cantora, guitarrista, pintora e verdadeira instituição da Bolívia – foi tomada em conjunto com o director musical e arranjador deste projecto, Fernando Cabrera.
Emma “flirta” com a balada jazz, abrigando-se sob a aura de um folk latino progressivo nas margens da intemporalidade. É mais suave e misterioso do que poderíamos imaginar, num jogo de cobra entre os tons maior e menor, conferindo a cada canção flutuações que a cada momento fogem às tonalidades típicas da música boliviana. Sensual, possuído por uma serenidade mágica e receptivo a experimentações formais, “Mi Corazón en la Ciudad” é uma sedução que, finalmente, não podemos explicar. (8)

Invocação dos mestres [Né Ladeiras]

Pop Rock

2 Abril 1997

Né Ladeiras canta Fausto com dedicatória ao lobo


INVOCAÇÃO DOS MESTRES

Fausto. Né Ladeiras. Dois representantes de uma espécie em vias de extinção, a dos criadores solitários que invocam os génios à luz da lua. Em “Todo Este Céu”, a cantora de “Traz-os-Montes” escolheu preencher a totalidade da voz com as canções do navegante de “Por Este Rio Acima”, a quem chama “mestre”. Sob a égide do lobo, “um animal com códigos muito especiais” – “ponte entre a terra e o céu”.


Né Ladeiras cresceu e aprendeu a ouvir a música de Fausto. Os anos passaram. Os astros actuaram. Ultrapassada a cordilheira da música tradicional de Trás-os-Montes, a cantora pôs, finalmente, em prática, um projecto há muito acalentado: um álbum de canções de Fausto. Dívida – ou dádiva – interior, da discípula ao mestre. Segue-se a crónica de uma relação ardente. Entre lobos.
PÚBLICO – O lobo é o tema central de “Todo Este Céu”. Por que razão o escolheu?
Né Ladeiras – O lobo é a ponte entre a terra e o céu, entre o microcosmos e o macrocosmos, pela forma como invoca, através do uvio…
P. – Além dessa conotação mística, há também uma componente ecológica?
R. – Sim. Quis igualmente chamar a atenção para a existência do grupo “Lobo” e para o Centro de Recuperação do Lobo Ibérico. Quem pertencer ao primeiro pode, se quiser, adoptar lobos. Não se trata de levar lobos para casa, claro, mas de dar uma contribuição para a manutenção deles naquele centro que é o único em Portugal e luta para que a espécie não se extinga de vez. Presentemente, pensa-se que existam apenas cerca de 200 lobos no nosso território.
P. – À primeira vista, não se percebe muito bem qual a ligação entre o lobo e a obra de Fausto…
R. – O lobo é um animal com códigos muito especiais, códigos de honra, uma forma de vida em alcateia, faz as coisas sozinho. Penso que o trabalho do Fausto tem sido um trabalho bem solitário.
P. – Quando é que decidiu fazer este álbum?
R. – Há muito tempo que andava na minha cabeça. Mas achava que não tinha crescido o suficiente para interiorizar as músicas do Fausto. Ouvi-o pela primeira vez em 1969, na rádio, num tema chamado “Oh pastor porque choras”. A letra falava de um pastor com cerejas nas orelhas, uma linguagem que, para uma criança, representava a abertura de todo um imaginário. E a música acompanhava esse imaginário. Comprei logo o “single”, pedi à minha mãe dinheiro. Mais tarde conheci Fausto, pessoalmente, na altura do filme “As Guerras do Mirandum”, do Fernando Matos Silva, e em que eu fazia parte dos Trovante. Gravámos dois temas juntos, “Os mandamentos do vinho” e “Eu casei com a bonita”. A partir daí fui acompanhando sempre os concertos dele.
P. – Em “Todo Este Céu” pediu conselhos ao compositor? Ele fez-lhe sugestões?
R. – Opiniões e conselhos. Nós, os discípulos, pedimos sempre conselhos aos mestres. Durante dois anos encontrámo-nos muitas vezes, sempre que eu vinha a Lisboa, para falar única e exclusivamente deste trabalho. A primeira vez aconteceu no estúdio, quando ele gravou comigo “A linda pastorica”. Nessa altura disse-lhe que estava cheia de vontade de fazer este trabalho. Ele olhou para mim, sem dizer nada. Passados uns tempos, voltei ao assunto e ele, aí, percebeu que eu estava a falar a sério. A obra do Fausto é imensa e eu achava que podia fazer um CD duplo. Tinha trinta e tal temas. Não queria deixar nada de fora. O Fausto fez-me ver que tinha que ser mais realista e que este meu entusiasmo pela obra dele teria que ser bem planeado. Acabei por fazer uma selecção, explicando-lhe as razões da escolha de cada tema. Descobri e revelei-lhe que a incidência recaiu nos temas em que ele era mais místico.
P. – Como definiria esse lado místico de Fausto?
R. – Está presente em temas como “Diluídos numa luz” ou “O despertar dos alquimistas”, que por acaso não aparece neste álbum, mas que passará a fazer parte do espectáculo. É uma espiritualidade que entendo à minha maneira. Não sei como é que ele compõe, que fontes de inspiração é que tem… Agora, aquilo que ele transmite aos outros, aquilo que ele me deu a mim, durante este anos todos, foi um encontro com o transcendente, com o que está “para além das cordilheiras”, o que está “Por Este Rio Acima”. Apercebi-me de que não falava só da matéria. Comparando com outros grandes compositores, como o Zeca Afonso, o José Mário Branco ou o Sérgio Godinho, o Fausto foi o único a falar de coisas das quais mais ninguém falava. Coisas menos óbvias.
P. – É difícil dissociar, em Fausto, a composição da interpretação. Procurou imprimir um cunho pessoal às canções ou, pelo contrário, seguir certas regras codificadas pelo compositor?
R. – O que me preocupou mesmo foi interiorizar cada palavra. Claro que é a minha forma de cantar, mas talvez se note mais neste trabalho a minha proximidade de Fausto, sempre são 20 anos a ouvi-lo, é óbvio que se apanha sempre coisas das pessoas de quem gostamos muito. Às vezes até se diz que as pessoas que se amam ficam parecidas. É natural que tenha alguns requebros e acentuações semelhantes aos dele.
P. – De toda a discografia de Fausto, há algum disco com particular significado para si?
R. – Amo-os a todos. Toda a gente fala do “Por Este Rio Acima” como a sua obra máxima, mas depois, e antes, há outros discos magistrais. A “Madrugada dos Trapeiros”, “História de Viajeiros”, mesmo o próprio “Beco com Saída” e o primeiro, simplesmente “Fausto”, de 1969. E “Para Além das Cordilheiras”, outro trabalho magistral, e “A Preto e Branco”, que foi recebido e tratado de forma um bocado injusta, onde ele apresenta duas coisas importantes, a forma de compor quando tinha 18 anos e os grandes poetas africanos. Daí eu ter escolhido “Flagelados do vento Leste”, de Ovídio Martins, para o meu disco. Estou ligada misticamente a África, pela minha própria corrente de candomblé. Mas a maior percentagem vem das “Crónicas da Terra Ardente”. Vi-me lá dentro, dentro daquela viagem. Senti-me como a ama que tinha o menino nos braços e via o barco a afundar-se. Entrei dentro daquele filme.
P. – No seu caso, como no de Fausto, a espiritualidade co-habita com uma postura de esquerda, a qual, por essência, é materialista…
R. – É uma pergunta que tenho feito a mim mesma nos últimos 20 anos! Sou, de facto, uma pessoa de esquerda… As pessoas torcem o nariz e atiram-me com aquilo a que chamam “as minhas crendices”… A espiritualidade está intimamente ligada a uma visão de esquerda do mundo, porque tem a ver com a justiça feita aqui. Para além de tudo o que possa acontecer do lado de lá, as coisas têm que acontecer aqui. Esta desigualdade social, esta violência, estas injustiças cometidas pelos homens, ainda estou para ver uma atitude da direita em relação a estes problemas. No plano espiritual, trabalhamos para isso. Preocupamo-nos em termos ecológicos, com as pessoas, com as desigualdades, não temos é, de facto, um discurso materialista. Apelamos àqueles que reagem, que nos ajudam de vários pontos do Cosmos.
P. – Um partido político fundado por si, seria fantástico!
R. – Não sei se teria jeito para isso. Só tenho jeito mesmo é para colaborar nos meus rituais, que são os Nação Nagô, o candomblé originário do Congo e de Angola. É aí que apelo aos meus orixás, que nos ajudem. O mundo está a escurecer.
P. – No meio dessa escuridão crescente, ainda é possível ver “Todo Este Céu”?
R. – Tem que haver olhos para atingir esses céus e esses céus só podem existir, só têm razão de existir, se os olhos estiverem abertos. Os olhos e o coração. “Todo Este Céu” é o título de um tema das “Crónicas da Terra Ardente”, do Fausto, e o meu firmamento. Foi como se ele me tivesse aberto uma janela e eu, pela primeira vez, tivesse visto um céu.
P. – Este disco é também um acto de gratidão?
R. – Era uma coisa que tinha de acontecer neste tempo. Não podia adiar mais nem poderia ser antecipado. O meu próximo passo é um disco sobre o paganismo e a religiosidade – onde existe um existe a outra – de três regiões portuguesas: Beira Baixa, Beira Alta e Trás-os-Montes. Vou andar pelo menos um ano e meio no campo, a percorrer esses lugares. É preciso viver, para se transportar e transmitir o que são a religiosidade e o paganismo, ir ao congresso de Vilar de Perdizes, às procissões, falar com a mulher das ervas que faz as mezinhas, ouvir cantar…
P. – Essa deambulação remete-nos de novo para o tema do início da conversa. A Né é uma loba solitária?
R. – Sou. Estou sempre a magicar. Sou uma pessoa de projectos. Gosto muito de trabalhar com outras pessoas, com outros músicos, de ter gente à minha volta, mas talvez seja o meu feitio, ter ideias que num grupo eram capazes de chocar ou de não ser bem entendidas.

E os pássaros caíram do espaço [The Byrds]

Pop Rock

2 Abril 1997
reedições

E os pássaros caíram do espaço

THE BYRDS

The Notorious Byrd Brothers (8)
Sweethearts of the Rodeo (5)
Dr. Byrds and Mr. Hyde (6)
Ballad of Easy Rider (6)
Columbia, distri. Sony Music

Roger McGuinn quis ser astronauta, mas não o deixaram. Quando Neil Innes, palhaço sábio da “troupe” Bonzo Dog Doo Dah Band, cantava, ainda nos anos 60, “I’m the urban spaceman” (canção posteriormente recuperada no antológico espectáculo ao vivo dos Monty Python no Hollywood Bowl), estava longe de imaginar que o tema se tornaria numa espécie de hino para McGuinn, líder pouco poderoso dos Byrds. Uma fantasia que voara pelo céu nos clássicos “Eight miles high”, “Mr. Spaceman” e “CTA – 102”, mas que ao longo de toda a obra dos Byrds posterior à obra-prima “Younger than yesterday” apenas teria direito a aparições fugazes, ou relegada para tapa-buracos, nos temas extra.
É uma história triste a que se conta a partir de 1967 e da edição dos quatro primeiros e seminais álbuns da banda americana. Remasterizados, polidos e embrulhados de acordo com a reputação dos seus autores, o novo pacote dos Byrds faz a história da decadência e o registo dos inúmeros equívocos que destroçaram por completo a identidade original do grupo.
Em 1968, McGuinn entrara para uma seita religiosa oriental, David Crosby afundava-se na droga e desafinava de propósito nas canções de que não era autor. Conta-se que era frequente, durante os concertos, olhar constantemente para o relógio e, passados mais ou menos 45 minutos, ala que se faz tarde, abandonar o palco. Crosby acabou por sair de vez, regressando, para o seu lugar, um dos elementos originais do grupo, Gene Clark, conhecido por um medo atávico de andar de avião. Infelizmente, a esta fobia juntara-se, entretanto, também o medo do palco e a claustrofobia. Depois de três espectáculos em que a sua prestação foi tão má que os outros se viram na obrigação de desligar subrepticiamente a amplificação da guitarra e o microfone, e de um ataque de pânico num elevador encravado, Gene não teve outro remédio senão ir de novo à vida.
Apesar de tantas contrariedades, “The Notorious Byrd Brothers” mantém a magia dos quatro primeiros discos, tirando partido da produção sofisticada de Gary Usher (antigo colaborador de Brian Wilson). É um disco que alia o interesse crescente de McGuinn pelas sonoridades electrónicas e pelo sintetizador Moog em particular (com a ajuda do mago Paul Beaver, parceiro de Bernard Krause nos seminais “Gandharva”, “In a Wild Sanctuary”), em temas como “Space odyssey” ou o extra “Moog raga”, com a apoplexia barroca dos emblemáticos “Sgt. Peppers”, dos Beatles, e o abortado “Smile”, dos Beach Boys. Naipes de cordas, em “Artificial energy” (sobre “speed”), vozes saturadas de “phasing” e pérolas pop como “Goin’ back” (de Carole King) e “Natural history” fazem de “The Notorious Byrd Brothers” o álbum mais estranho do grupo. De fora ficara “Triad”, um tema sobre amor a três, que acabou por estrear na fantástica versão dos Jefferson Airplane, em “Crown of Creation”, mas que agora foi recuperado na colecção dos extras.
A partir daqui tudo se complicou, com a entrada do novo elemento, Gram Parsons, para o grupo. McGuinn pensava então ter chegado a altura de pôr em prática a sua obra, há muito projectada, de “space music”, contando para tal com os talentos de teclista do novo elemento. Pura ilusão. Parsons tomou conta dos Byrds e, com o apoio de outro elemento restante da formação original, Chris Hillman, convenceu o próprio McGuinn de que o futuro não estava no espaço, mas no campo. Os Byrds tornavam-se num grupo de música “country” e “Sweethearts of the Rodeo” acabaria, estranhamente, por ser, de entre toda a discografia do grupo, o álbum que lançaria sementes, formando gerações de novos músicos, que aí viram o pretexto para pegar nas raízes da música branca norte-americana.
Esta dicotomia entre tensões contrárias, o gosto pela ruralidade, por um lado, o apelo da tecnologia e da inovação, por outro (esta última, como é óbvio, instigada por um homem só, Roger McGuinn), ficaria ainda por resolver no álbum seguinte, “Dr. Byrds and Mr. Hyde”, título só por si revelador da personalidade esquizofrénica que os Byrds desenvolveram na proporção directa da sua desagregação, de resto, fielmente retratada na fotografia da contracapa, onde um “cowboy” e um astronauta seguram no disco, com a legenda “Cowboys and spacemen: A short saga”. É um álbum que hesita entre a insistência na canção “country” (afinal, a própria crítica especializada desvalorizara o esforço anterior…) e os restos de um psicadelismo perdido, em temas em que os Byrds, se ainda voavam, voavam baixinho, como em “Child of the universe”, ou choramingando na nostalgia por Bob Dylan, que repescam em “This wheel’s on fire”.
O naufrágio consumar-se-ia em “Ballad of Easy Rider”, um álbum e uma nova formação erráticos (com John York, Gene Parsons e Clarence White), que procuraram, num último esforço, a salvação do “gospel” (“Jesus is just alright”, um “hit”, pelos Doobie Brothers), nos cânticos tradicionais dos marinheiros ingleses, em Woody Guthrie e, ainda e sempre, em Dylan, através de “It’s all over now, baby blue”, título profético. Do sonho espacial de Roger McGuinn ficariam, a fechar o disco, “Armstrong, Aldrin and Collins”, a celebrar a conquista da Lua pelos americanos e, nos extras, a derradeira aberração de “Fiddler a dram”, um instrumental “folk” tocado no sintetizador Moog.

Novo álbum de Sérgio Godinho em fase de misturas

POP ROCK

26 Março 1997

Novo álbum de Sérgio Godinho em fase de misturas

Sérgio Godinho saiu dos estúdios Cha Cha Cha – onde esteve a gravar durante um mês – na passada sexta-feira, terminando a fase de gravações do que será o seu próximo álbum de estúdio, primeiro desde “Tinta Permanente”, de 1993. Anteontem, o cantor-compositor partiu para Paris, onde efectuará o trabalho de mistura e masterização. O álbum tem, na maior parte dos temas, direcção musical e produção de Manuel Faria, funções que, noutros temas, partilha com o próprio compositor e com Paulo Pulido Valente.
Trabalho colectivo por excelência, “um disco de músicos”, como o próprio Sérgio Godinho fez questão de salientar, os arranjos dividem-se por Manuel Faria (em quatro temas), Kalu, dos Xutos e Pontapés (dois temas), Tomás Pimentel, João Aguardela, dos Sitiados, Jorge Constante Pereira, José Mário Branco (colaboração que põe termo a um longo intervalo de “separação” entre os dois músicos), havendo ainda um tema arranjado por vários elementos dos Rádio Macau.
Com a participação de cerca de 40 músicos, incluindo um quarteto de cordas e um naipe de metais, o novo álbum de Sérgio Godinho terá Kalu a tocar bateria na maioria das canções, com participações ocasionais, neste instrumento, de Sérgio Figueiredo, dos Despe e Siga, André Sousa Machado e Rui Alves. Nani Teixeira toca baixo e Nuno Rafael, também dos Despe e Siga, encarrega-se da guitarra eléctrica. Outros convidados são Ricardo Rocha, na guitarra portuguesa, Tito Paris, na guitarra, e Carlos Guerreiro, que participa numa versão “reformulada” e “irreconhecível” de um tema que faz parte do alinhamento do álbum de estreia dos Gaiteiros de Lisboa, “Invasões Bárbaras”.
Segundo Sérgio Godinho, é um álbum “que aponta em várias direcções, extremamente aberto ao nosso tempo, com um caminho central reconhecível”, onde se cruzam as “leituras” características do autor de “Pano-Cru” com as “contribuições de Manuel Faria e dos outros músicos”. Há ainda algumas “rupturas”, ou “evoluções”, onde se apontam “novas pistas”, num disco “mais agreste” e com um som “mais sujo” do que os anteriores. “Histórias contadas” e “coisas que não são histórias”, onde se misturam ambientes que passam por Kurt Weill, “loops” de bateria, ritmos de chula e “rock” do duro, percorridos pelas habituais personagens saídas da imaginação de Sérgio Godinho.
Só depois da chegada de Paris, onde Sérgio irá permanecer uma semana, é que será decidida a data de lançamento do novo álbum.

Um elefante ao microscópio [Yello]

Pop Rock

26 Março 1997

Yello metem o universo no bolso

Um elefante ao microscópio

Boris Blank fechou-se no estúdio, na companhia de um cão e dos seus amigos sintetizadores e computadores, para criar o seu pequeno universo de bolso, de “bips” e “beats” alinhados nas tendências actuais da música de dança. “Pocket Universe”, o novo álbum dos Yello, é o trabalho de um cientista agarrado ao microscópio. Com a voz de Stina Nordestam e as mãos de Carl Cox.

Foram pioneiros da electrónica aplicada à dança, mas hoje repetem os passos dos seus seguidores. O êxito e o dinheiro transformaram os Yello de grupo compincha dos Residents num circo de luxo habitado por muito luxo e pouco excesso. “Se tiver um circo pequeno com burros, vacas e patos e ganhar algum dinheiro, vai querer comprar um elefante ou um trapezista”, explicou ao PÚBLICO Boris Blank, sintetista desta banda suíça que um dia gravou um disco tão inovador como bizarro. Chamava-se “Tem que Dizer sim a mais Um Excesso” e tinha um gorila na capa.

PÚBLICO – “Pocket Universe” faz um apanhado de drum ‘n’ bass, house e jungle. O que significa que de pioneiros e líderes de movimento os Yello passaram à condição de seguidores. Isto não o incomoda?
BORIS BLANK – Somos considerados os pais da música tecno, juntamente com os Kraftwerk. Se somos os pais, então devemos ter alguns filhos. Se um filho fizer algo bom, o pai pode ser inspirado por ele. Mas o importante é que a nossa música tem conservado um som que é tipicamente Yello.
P. – A partir do álbum de remisturas “The New Mix in One Go”, esse som tornou-se progressivamente mais comercial. Continua a reivindicar para os Yello esse “campo de experimentação onde tudo pode acontecer”, como diz na folha de promoção?
R. – Digamos que, nos álbuns mais recentes, nos inclinámos mais para as canções. Mas creio que o novo disco é relativamente experimental, do mesmo modo que era experimental aquilo que fizemos há 17 anos, nos dois primeiros álbuns. [N.R. “Solid Pleasure” e “Claro que Si”, para a mesma editora, a Ralph, onde gravavam os Residents.] Mas tenho que reconhecer que gostaria de fazer um tipo de música mais experimental sem preocupações de ser passada na rádio.
P. – Para nós, a obra-prima dos Yello é “You Gotta Say yes to Another Excess”. Pode dizer-se que, hoje, o lema é “You gotta say no another excess”?
R. – Continuamos a divertir-nos e creio que há neste álbum mais excesso do que nos imediatamente anteriores. Tem uma transparência, como se existisse filmes no seu interior. É uma música visual. Para mim, isso é experimental e, nalguns temas, muito excessivo.
P. – “One Second” marcou uma viragem no som dos Yello, que se tornaram numa espécie de pioneiros do electropop. Sentiram nessa altura a pressão ou o desejo de entrar para o circuito da música de dança?
R. – Não, sempre fizemos apenas aquilo que queríamos. Música e diversão. Não pensamos em conceitos prévios para depois aplicar à música. Ao fim destes 17 anos, continuamos a ter o mesmo rosto, não o alterámos recorrendo a qualquer cirurgia plástica.
P. – Em “Pocket Universe”, a voz e os instrumentos foram gravados em separado. É esse o modo usual de trabalharem?
R. – A música surge sempre primeiro que as letras. Só que, desta vez, o Dieter gravou a voz noutro estúdio, trazendo-me uma disquete que eu posteriormente “liguei” à música, como se estivesse a ligar um cabo. Foi uma experiência interessante.
P. – A propósito deste disco, disse que se “deixou flutuar através do maravilhoso cosmos da música”. É mais uma das típicas piadas dos Yello…
R. – É o que tenho andado a fazer nos últimos tempos, a trabalhar em novos temas onde funciono como um cientista que observa os fenómenos através de um microscópio. Pode proceder-se da mesma maneira com os sons, fazer uma síntese e manipulá-los até ficarem totalmente diferentes do que eram antes. É este o meu pequeno universo onde flutuo em cada dia, no estúdio, entre os meus sintetizadores e computadores, que são os meus melhores amigos. Trabalho sempre sozinho. A minha única companhia costuma ser um cão…
P. – Quer dizer que nunca trabalha em conjunto com Dieter Meier?
R. – De facto, não é frequente. Em cada álbum, passa apenas duas ou três semanas comigo. O resto fica a meu cargo.
P. – Em anteriores álbuns convidou para cantar Shirley Bassey, e Billy McKenzie. Em “Pocket Universe” o convite foi endereçado a Stina Nordestam. Por alguma razão em especial?
R. – Quis ter uma voz feminina em “To the sea”, porque achei que este tema ficaria melhor com um registo agudo, em vez de um grave. Gravei-o numa cassete e dei-o a ouvir a Stina, que veio a Zurique já com ele completamente preparado. Acabámos as letras, a harmonia e a vocalização, tudo em três horas. Depois ela desapareceu…
P. – Por que razão convidou Carl Cox para produzir o tema “Magnetic”?
R. – Achámos que devíamos fazer alguma coisa juntos quando nos encontrámos em Zurique para discutir o projecto “Hands on Yello”. Depois, fizemos um concerto juntos, em Dortmund. De novo em Zurique, resolvemos produzir-nos mutuamente. Trabalhámos juntos dois dias, fartámo-nos de rir…
P. – Que opinião tem sobre esse projecto, “Hands on Yello”, de remisturas de temas do grupo?
R. – Acho interessante ver o que as outras pessoas conseguem fazer com as nossas cores sonoras. É uma sensação engraçada. Achei que talvez tenham demonstrado um respeito excessivo pelos Yello. Podiam ter sido bastante mais loucos…
P. – Os Yello têm hoje um êxito considerável. Isso representa para o grupo um alívio ou uma armadilha?
R. – Se tiver um circo pequeno com alguns burros, vacas e patos, é claro que terá que os alimentar. Se ganhar algum dinheiro, vai querer comprar um elefante ou um trapezista, que custam mais caro. O sucesso significa ter mais dinheiro e mais pessoas a virem ao circo. Até agora, têm gostado do nosso circo.
P. – A música do grupo já foi usada em contextos tão diferentes como um filme de animação da produtora japonesa Manga e um “spot” publicitário da cerveja Budweiser. Agrada-lhe este tipo de apropriação?
R. – Absolutamente. São sempre janelas para os Yello, uma montra onde qualquer pessoa pode escutar a música e perguntar quem é que a fez. Talvez gostem dela e vão comprar os discos. Até porque é muito raro tocarmos ao vivo.
P. – Pode dar-nos alguma informação sobre o videoclip de “To the sea”? Tem imagens e uma montagem verdadeiramente espantosas (Manhattan transformada numa gigantesca piscina de mergulhos, com nadadores a lançarem-se do alto dos arranha-céus)…
R. – As primeiras imagens foram feitas sem o Dieter. As imagens em que ele entra foram acrescentadas por um inglês, Paul Morgan, que realizou todo o trabalho. As fotos que tirámos foram feitas em Londres, durante dois dias, dentro de água, numa piscina verdadeira.

Yello - Pocket Universe

Pop Rock

26 Março 1997

YELLO
Pocket Universe (6)
Mercury, distri. Polygram

Funciona a pescadinha de rabo na boca. Os Yello desbravaram, na aurora dos anos 80, o caminho à tecno e ao jungle. E, 1987 apanharam a última carruagem e vão a reboque do movimento que ajudaram a criar. Desde 1980, data de estreia do seu primeiro trabalho na Ralph (editora a que pertenciam, na mesma época, os Residents e os Tuxedomoon), “Solid Pleasure”, a evolução do duo suíço constituído pelo “crooner” Dieter Meier e o teclista Boris Blank processou-se no sentido do experimentalismo de comédia para a música de dança desalinhada. A partir de “Claro que Si” e “You Gotta Say yes to another Excess”, para nós os dois melhores álbuns da dupla, as cadências de dança e uma crescente aceitação na cena internacional tomaram conta dos Yello, numa progressão direita ao comercialismo, que começou na colecção de remisturas “Yello 1980.1985, The New Mix in one Go” e atingiu a completa esterilidade em “Zebra”, de 1994. “Pocket Universe” é uma fuga para a frente e a queda no buraco negro da música sintética. Uma visão iluminada pelos “pulsares” do drum’n’bass, da house e do jungle, onde a voz de barítono de Dieter Meier enche, em comentários de circunstância, as “catedrais de som” elaboradas pelo seu companheiro. Resulta simultaneamente maquinal e etérea (tão etérea como a voz de Stina Nordestam, convidada especial no tema “To the sea” – já agora, o “videoclip” é espantoso) a auto-estrada de humor cósmico encenada pelos Yello com um desprendimento próprio de reis. Trazem para o universo de bolso dos clubes de dança uma experiência acumulada e uma imensa gargalhada de desprezo a piscar no visor: “O futuro fomos nós!”

29/12/2008

Kluster + Moebius, Neumaier, Engler

Pop Rock

26 Março 1997

Metal Machine Music

KLUSTER
Klopfzeichen (7)
Zwei - Osterei (7)
Moebius, Neumaier, Engler
Other Places (8)
Hypnotic, distri. Symbiose


Quatro anos antes de Lou Reed fundir a sua “Metal Machine Music”, o trio alemão constituído por Dieter Moebius, Hans-Joachim Roedelius e Conrad Schnitzler, então com a designação Kluster, apresentava a sua siderurgia sonora, antecipando em uma década a música industrial e longe de imaginar o papel que desempenharia na actual gestação do movimento das bandas do pós-rock. Schnitzler abandonaria o grupo para uma passagem breve pelos Eruption (que participariam no terceiro e último álbum dos Kluster) e, posteriormente, os Tangerine Dream, antes de enveredar por uma longa e produtiva carreira a solo, dedicada à experimentação electrónica. Moebius e Roedelius trocariam, entretanto, o “K” do grupo pelo “C”, ficando tudo a postos para os Cluster operarem a sua obscura revolução de ruído no seio da “Kosmische muzik”.
“Klopfzeichen” e “Zwei Osterei” são as duas primeiras e míticas gravações do, então, trio, referidas por muitas mas ouvidas por poucos. Com o desaparecimento das fitas originais, a editora optou por um registo obtido directamente a partir dos exemplares disponíveis que foi possível encontrar. Questão de somenos, quando a música destes dois álbuns, ambos com data de edição de 1971, se resume a uma monstruosa cacofonia sequenciada.
A gravação surgiu na sequência de um anúncio publicado num jornal a pedir um organista de igreja interessado em música nova. Schnitzler respondeu e os discos acabaram por resultar de negociações com o meio eclesiástico, daí que mais ou menos os dez minutos iniciais de cada um sejam uma mistura de sons industriais com a declamação, em alemão, de textos religiosos (!). Em nenhum deles há divisão de faixas, mas apenas os respectivos títulos-temas, longas improvisações nas quais os três músicos se atiram com denodo à nobre tarefa de sacar aos sintetizadores, guitarras e até a uma flauta, os ruídos mais desagradáveis ao ouvido, tudo filtrado por insistentes efeitos de “delay” e amplificação no máximo. Como “Metal Machine Music”, trata-se de dois álbuns cuja importância histórica tem mais a ver com a imposição pioneira de uma estética do que com a qualidade da música propriamente dita.
Muita água passou, entretanto, por baixo das pontes. Os Cluster tornaram-se um grupo relativamente respeitável e tanto Moebius como Roedelius ganharam o estatuto de figuras-chave da música electrónica europeia. “Other Places” – colaboração de Moebius com Mani Neumeier, antigo baterista da banda de free-rock Guru Guru (já tinham trabalhado os dois juntos em “Zero Set”), e Jurgen Engler, da banda electro-industrial dos anos 80, Die Krupps – joga ainda na improvisação. Mas enquanto os Kluster procediam à manipulação de uma massa sonora que evoluía de forma orgânica, ao sabor do instinto dos executantes, “Other Places” revela uma dinâmica de movimentos que está dependente das programações, justapondo camadas de timbres e ritmos electrónicos que poderiam perfeitamente passar por exercícios de escrita. Ao contrário, porém, do ordenamento sistemático de uns Kraftwerk, sobreleva ainda, neste música, um gosto pelo tribalismo e pelo lado mais visceral da vibração electrónica. Como se aos músicos coubesse, mais do que de instigadores, o papel de domadores de máquinas da selva.

Suave sobressalto [Marta Dias]

Pop Rock

26 Março 1997

Marta Dias estreia-se a cantar sobre “ritmos lentos”

SUAVE SOBRESSALTO

“Y-U-É” constitui a estreia discográfica, a solo, e Marta Dias, uma voz talentosa que antes já colaborara com General D, Ithaka e Cool Hipnoise. Sobre ritmos trip hop ou em temas mais afadistados, é uma outra maneira de fazer dançar suavemente. Ou não fossem os seus heróis os nomes míticos da Tamla Motown.


A serenidade prevalece nos sons e no discurso desta jovem cuja estreia discográfica aponta cruzamentos estimulantes da balada jazz e soul com a música de dança. Histórias vividas por interposta personagem, onde a nostalgia deixa um “travo de inquietação”.
PÚBLICO – Na folha promocional pode ler-se que “começou a cantar as músicas que ouvia”. Que músicas eram essas?
MARTA DIAS – Canto desde sempre. Tenho a sorte de pertencer a uma família onde éramos incentivados a cantar ou a representar. A primeira música que ouvi foi do José Barata Moura, era o meu ídolo quando tinha seis anos. Ouvi também muitas canções da resistência, os meus pais eram de esquerda, muito Zeca Afonso. Mais tarde, Amália, fruto de uma grande fixação que o meu padrasto tinha pelo fado. Também música clássica, Mozart. Depois comecei a ouvir as minhas coisas, música da Motown, que colidia com tudo o que ouvia em casa.
P. – O quê, da Tamla Motown?
R. – Temptations, Jackson Five, Diana Ross, Gladyz Knight and the Pips, Martha Reeves and the Vandellas. Sobretudo, houve canções que me marcaram, “Take me in your arms and love me”, da Gladys Knight, muitas coisas dos Temptations, inclusive fizemos uma versão de “Papa was a rolling stone”, ao vivo.
P. – Quando e onde cantou pela primeira vez em público?
R. – Aqui em Setúbal, com o Teatro de Animação da cidade. A solo, cantei uma vez no Dia da Mulher, também com dois guitarristas, um trabalho acústico com clássicos portugueses. Há cerca de dois, três anos.
P. – Antes tinha estado em Colónia. Essa estada foi-lhe útil, em termos de evolução artística?
R. – Teve muita influência, no sentido de poder desbravar a voz. Sempre tinha cantado a título de brincadeira, de gozo, de fruição. Conheci então uma cantora e professora de canto, Marta Laurito, brasileira. Conhecemo-nos no elevador, ouvi falar português, alguém a chamar Marta, que também é o meu nome. Meti-me com ela, soube que era cantora de ópera e disse-lhe que era uma coisa que eu adorava fazer. Sempre tivera vergonha de dar aqueles berros, quer dizer, eu dava os meus berros, mas não eram muito sintonizados!... Ela ofereceu-se para me dar aulas, aceitei, uma vez por semana. Foi óptimo. Depois tive aulas cá em Portugal, com a Filomena Amaro, no Conservatório de Setúbal.
P. – Essa aprendizagem serviu-lhe apenas do ponto de vista técnico ou influenciou também o seu estilo?
R. – Serviu para poder fazer imensas coisas que gostava de fazer com a minha voz e até essa altura não sabia como. E para me dar alguma disciplina. Mas em termos de estilo e orientação, não. Porque desisti muito cedo de qualquer vontade de seguir carreira na ópera.
P. – Porque é que desistiu?
R. – Gosto demasiadamente da minha vida e quero ter uma. Não quis tornar-me uma garganta e não fazer nada, foi isso que me assustou. Acredito, sobretudo, na expressão. Acho que uma voz transmite histórias, coisas vividas. A perspectiva de passar o tempo todo com um cachecol enrolado à volta da garganta e de não poder fazer nada, porque isso me poderia afectar, não me agradava. Por mim, mesmo rouca, cantava.
P. – Antes da gravação do disco, colaborou com General D, Cool Hipnoise e Ithaka. Conte como foi.
R. – Com o General D, ele estava à procura de uma pessoa para cantar um tema com uma referência aos blues. O meu irmão, que também é “rapper”, apresentou-mo no concerto dos Urban Species. Fui ensaiar com eles, começámos logo com o tema, que se chamava “Amigo prekavido”. Fiz uma intervenção com uma frase de blues, salvo erro, do John Lee Hooker. Com os Cool Hipnoise foi uma participação muito breve, muito subtil, ao nível de coro, no tema “Bairro da lata”. Como os Ithaka, o Darin Pappas e o Pedro Passos estavam também à procura de uma pessoa… É engraçado, nesses três projectos acabei por ter a mesma função.
P. – Darin Pappas que participa no seu disco…
R. – … Como eu participo no próximo disco dele. Foi ele que escreveu uma letra para o meu CD, “Look to the blue”.
P. – E o seu encontro com o produtor Jonathan Miller?
R. – Conheci-o antes das gravações com o General D. Ouviu a minha voz num ensaio, gravámos, depois estive imenso tempo sem ouvir falar dele. Um dia telefonou-me a dizer que gostara imenso da minha voz e que podíamos trabalhar juntos. Fiquei um bocadinho espantada. Na altura estava no Hot Club a ter aulas e estava mais interessada na formação dentro de uma área mais jazzística. Não me passava pela cabeça gravar um disco. Ele mandou-me uma “maquette” com alguns temas, mais tarde encontrámo-nos para compor. Funcionou bem.
P. – As decisões, ao nível da produção e da composição, foram da inteira responsabilidade dele ou a Marta também teve alguma palavra a dizer?
R. – Ele compunha uma base instrumental, eu escrevia a letra, e a partir daí trabalhávamos a dicção, possíveis opções, eu punha alguns instrumentos, seleccionávamos o que funcionava melhor. Na produção, os créditos são só dele. Mas se havia qualquer coisa que eu achava absolutamente repelente, ele não insistia…
P. – Em certos temas, Amália pode ser apontada como referência?
R. – Amália influenciou-me muito, mas isso não quer dizer que se ouça Amália no que eu canto. Ela inspira-me, na medida em que as coisas dela estão sempre presentes na minha cabeça.
P. – Aliás, os registos de voz que utiliza no álbum são múltiplos…
R. – Tenho uma costela africana, outra indiana, há uma fusão muito grande em mim.
P. – O hip hop e o trip hop estão inevitavelmente presentes na base rítmica de alguns temas. É sobre elas que se sente mais à vontade a cantar?
R. – O disco tem uma certa coerência em termos de ritmo. Há quem lhe chame “ritmo lento”. Sinto-me confortável a cantar nessa onda. Os temas são todos mais ou menos intimistas, mais ou menos nostálgicos.
P. – O jazz também está presente. Se lhe pedisse que citasse cantoras, que nome escolheria?
R. – Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan. Sou uma clássica e absolutamente conservadora nesses domínios.
P. – O álbum revela uma enorme serenidade da sua parte. É assim mesmo na vida real?
R. – Há uma tranquilidade na música, mas não nas letras. Gosto de contar histórias que sejam aparentemente normais mas que deixem um travo a inquietação. Que de repente, quem as ouve, tenha um certo sobressalto.
P. – Como é que constrói essas histórias? Saem apenas da imaginação ou de vivências concretas?
R. – Há muitas pessoas que cruzaram a minha vida e muitas experiências. E situações que não compreendo totalmente mas em que imagino alguém, que não sou eu, eu está lá sentada, a vivê-las. Sentada, porque está a observar, sem nunca participar totalmente. É essa pessoa intermédia que me vai contando o que os outros estão a viver.

Xutos & Pontapés - Dados Viciados

POP ROCK

26 Março 1997
portugueses

XUTOS E PONTAPÉS
Dados Viciados (7)
Ed. E distri. EMI-VC

“Telecaster”, o instrumental que abre “Dados Viciados”, não consta do alinhamento. Para se ouvir este tema-fanstasma em que os Xutos fazem a recriação “kitsch” do ambiente de um casino, deve-se carregar continuamente na tecla de recuo do leitor, no início do tema número um, até se entrar na contagem de tempo correspondente ao tema escondido que está gravado antes.
Se se preferir começar “Dados Viciados” pelo tema de abertura, com o mesmo nome, apanha-se, de imediato, com um pontapé na cara. A entrada do grupo de Tim, Zé Pedro, Kalu e João Cabeleira para a sua actual editora coincidiu com o desengatilhar de energias contidas, agora libertas em puro rock’n’roll. As guitarras dispararam, o ritmo acelerou, o império do “riff” veio para ficar. Ronnie Champagne, o produtor que soube adivinhar nos Xutos toda esta força contida e canalizá-la através de um som mais internacional do que o das obras precedentes, reduziu a estrutura das canções ao essencial: voz, guitarras, baixo e bateria, lançados a galope, como se o tempo escasseasse e os Xutos tivessem urgência em atirar às cegas os dados desta sua nova aposta.
Descansa-se ao tema número quatro, “Manhã submersa”, com passagem para o psicadelismo, inoculado de orientalismo, de “Um jogador”, acelerando-se um pouco em “Mil dados”, sequência de “riffs” pesados, na tradição dos grandes mamutes da antiguidade, Deep Purple, Led Zeppelin e Black Sabbath. “Negras como a noite” inicia-se no balanço suave de uma guitarra acústica, a letra e vocalização de Tim fazendo lembrar a mesma temática de separação dos Rio Grande. Nas distorções dilacerantes da guitarra que angustiam “No quarto de Candy” entra-se para o mesmo quarto frequentado, a horas proibidas, pelos UHF.
Mas é no rock que se forjou e continua a afirmar a identidade dos Xutos, quer em desaustinação “punk”, quer em velocidade de cruzeiro. Não há em “Dados Viciados” qualquer espécie de ruptura com o passado, mas antes a redescoberta e rejuvenescimento das mesmas premissas de sempre: dizer depressa e sem subterfúgios o tempo que escasseia e a vontade de ir em frente, mesmo se pela frente estiver um muro ou um abismo. É a velha máxima do “No future” reciclada para os anos 90, segundo as regras de um jogo, à partida, viciado. Mas os Xutos continuam a lançar a cabeça contra o pano verde.

Brenda Wooton - The Voice Of Cornwall

POP ROCK

26 Março 1997
world

Mamã Cornualha

BRENDA WOOTON

The Voice Of Cornwall (8)
Keltia, distri. MC – Mundo da Canção

Ouvimos pela primeira vez Brenda Wooton cantar, num disco duplo que registava as participações de alguns artistas no Festival de Música céltica de Kertlag, de 1973, na Bretanha, entre os quais Dremmwel, Planxty e os L’Habit des Plumes, de René Werneer. Impressionou-nos, então, a força e o tamanho desta mulher, com uma voz e corpo de proporções avassaladoras. Voz que não se perdia na projecção operática de um peito de turbina, antes era capaz de se soltar como um pássaro, em modulações de bailarina. Um dos temas que esta cantora natural da Cornualha – a península onde a Inglaterra se debruça sobre a Bretanha – cantou em Kertlag, onde era patente a extrema emotividade posta na interpretação, chamava-se “Mordonnow” e está incluído na presente colectânea.
Brenda Wooton morreu, faz este mês precisamente dois anos, com 66 anos de idade, a melhor homenagem que lhe pode ser feita é ouvir este disco e perceber a emoção antiga que o percorre. Brenda Wooton cantou, com uma alma tão grande como a sua voz e o seu corpo, um reportório que, além da tradição da Cornualha, não desdenhou o “gospel” (aqui representado em temas como “Old time religion”), os “blues”, o “jazz”, o “rock” e os hinos religiosos (nalguns temas desta colectânea, acompanhada por um coro infantil). Cantou com Alan Stivell e era uma figura querida dos bretões, que lhe chamavam “a voz da Cornualha”. Para os franceses em geral, era “mamã Cornualha” e, na linguagem sagrada dos bardos, respondia por “Gwylan Gwanvas”, a “gaivota de Newlyn”. “A capella”, em duetos vocais ou com o discreto acompanhamento de uma guitarra, uma concertina ou percussões (não existe ficha técnica do que são, sem dúvida, registos de ocasiões separados no espaço e no tempo), a voz sobressai sempre, na evocação dos dias da rádio – quando cantar implicava a dádiva e empenhamento totais – e por uma pureza que redimia a singeleza das origens. “As minhas canções são como amigos, cada uma com a sua personalidade e o seu ambiente. Enquanto estou a cantar, pinto na minha cabeça os seus retratos. Posso apresentar-vos os meus amigos?”. Foi assim que Brenda Wooton se dirigiu ao público francês, no início de um concerto.

Barabàn - La Santa Notte Dell'Oriente

POP ROCK

26 Março 1997
world

Barabàn
La Santa Notte dell’Oriente
ASSOCIAZONE CULTURALE BARABÀN, DISTRI. MC - MUNDO DA CANÇÃO

Como o Natal é todos os dias, esta colecção alusiva à época, com assinatura dos celtas da Lombardia, os Barabàn, faz todo o sentido. Quem quiser seguir a estrela terá que acompanhar os Reis Magos e descer no presépio onde nasceram estes 11 temas, subdivididos numa miríade de canções, cuja exacta localização geográfica pode ser verificada no pequeno mapa que o grupo italiano inclui no livrete. No Norte de Itália, por onde andaram os celtas, a herança cristã confundiu-se com a religiosidade pagã dos séculos anteriores. E resulta esta mistura, onde os cânticos de louvor a José, Maria e o Menino dão inocentemente as mãos ao culto da Natureza e às cerimónias mágicas. Multiplicidade religiosa e cultural que os Barabàn aproveitaram para, por seu lado, diversificarem o modo como colheram, a ocidente e oriente, as flores musicais do Natal. Abriram mão da rigidez que poderia advir do dogma religioso, para variarem o estilo e a cor musicais, tirando máximo partido da parafernália instrumental que têm à sua disposição (acordeão, teclados, sanfona, “bouzouki”, ocarina, violino, “piffero”, clarinete, “darbouka”, “ghatam”, gaita-de-foles, harmónica, etc.). Mas, apesar de tudo, como é Natal, haja respeito e, neste aspecto, os Barabàn refrearam a sua fome de electricidade, pondo de lado alguns excessos de sintetizadores e sequenciadores, que batem forte e feio nos anteriores “Naquane” e “Barabàn Live”. A gaita-de-foles de Paolo Ronzio, na introdução de “Nina” é, por si só, uma oração. Entre o calor das polifonias, suspiros de música antiga, sinos pendurados na voz de uma criança e luzinhas a apagar e a acender no abeto. Um álbum de tez antiga, sem espinhas, para ouvir de noite, devagar. Noite feliz. (8)

Les Nouvelles Polyphonies Corses - In Paradisu

POP ROCK

26 Março 1997
world

Les Nouvelles Polyphonies Corses
In Paradisu
MERCURY, DISTRI. POLYGRAM

Eis o exemplo típico de uma fórmula esgotada. Fazer chegar as polifonias da Córsega aos ouvidos comodistas não é fácil, reconheçamos. Foi preciso convocar uma infinidade de estrelas pop, sob a liderança de Hector Zazou, para que “Les Nouvelles Polyphonies Corses”, no seu primeiro volume, tivesse o sucesso que teve. Mas as estrelas foram à sua vida e a tarefa continuou ciclópica como era dantes. John Cale, que já participara no disco anterior, tomou, desta feita, nas suas mãos a produção, partilhando-a com David Young. Há uma explicação para esta partilha de responsabilidades. É que “In Paradisu” está montado segundo um esquema no qual faixas “duras” de polifonias “a capella” são intercaladas com os temas de fusão que fazem vender. Cale encarregou-se apenas da produção destas últimas, as quais, diga-se em abono da verdade, se aproximam, nalguns casos, da indigência, como acontece no tema de abertura, onde a ânsia de fazer dançar transforma “Perdona mio diu” num pecado imperdoável. Quanto à outra metade, a cargo de Young, dirige-se aos puristas que certamente acharão intoleráveis as intromissões do outro lado. Do “outro lado” não estão desta vez nomes sonantes, descontando Patti Smith, que faz uma declamação em “Dies irae”. Escondido na mesa de mistura, está ainda Ben Neill, um nome bem conhecido entre os apreciadores das “novas músicas”, com o seu “mutan-trumpet”, simbiose de trompete com computador. “In Paradisu” tem como subtítulo “Missa dos vivos e missa dos defuntos”. Quem é quem, cada um que decida… Um caso típico onde os respectivos participantes “não sabem da missa a metade”… (6)

The Orb - Orblivion

Pop Rock

12 Março 1997
poprock

THE ORB
Orblivion (7)
Island, distri. Polygram

Quando muitos já faziam o enterro da banda do “doutor” Alex Patterson, a grande cabeça misturadora dos The Orb, por má vontade ou pelo pouco sucesso, tanto comercial como artístico, que marcou os anteriores “Pomme Fritz” e “Orbus Terrarum”, eis que o grupo renasce das cinzas. O ambientalismo de geleira deu lugar ao golpe de facas afiadas, numa operação de montagem e confrontação sónica levada a cabo no estúdio em Berlim de Thomas Fehlmann, elemento preponderante na feitura de “Orblivion”. Existe uma componente subversiva que esmaga o apaziguamento de qualquer sessão de “chill out”. A ressaca mói. Porque as palavras sampladas de um julgamento anticomunista, de vozes étnicas ou de “Nu”, o filme de Mike Leigh, induzem a paranóia, tanto quanto os sons, resolvidos do avesso num infatigável fluxo/refluxo de obsessões rítmicas, na derrapagem de “breakbeats” subterrâneos. “Orblivion” não faz circular emoção. Mas é este processo de desmultiplicação de mensagens que unicamente passam pela máquina sob a forma de programas – estéticos e ideológicos ou onde a estética é a própria ideologia – que distingue a maior parte de grande parte da música electrónica que se tem vindo a produzir neste final de século. Separando-a, quer da perturbação causada pela música industrial, quer da levitação causada pelo rolamento de esferas sintéticas do universo criado pelos Kraftwerk e do consequente tecno. Tudo evolui ao nível do mental e da programação para simular um aquário de vida artificial. A cidade global e desculturizada desenhada em gráfico no monitor de “Orblivion” é a imagem do esquecimento e do vazio. Ficaremos sem dúvida mais altos e fortes e sãos. “Empire state humans” como anunciavam, já lá vão quase 20 anos, os Human League. Construído nesta dinâmica de alternância entre o macrocosmos de cidades virtuais e microcosmos de neurónios em sobrecarga, “Orblivion” revela-se impraticável nas pistas de dança, da mesma maneira que foge ao êxtase do transe. Não há pastilha que lhe valha. Quem quiser que entre na engrenagem.

23/12/2008

Fura fura [The Residents]

Pop Rock

12 Março 1997
reedições

Fura fura

The Residents

Not Available (9)
The Third Reich ’n’ Roll (8)
Duck Stab/Buster & Glen (8)
Fingerprince (8)
Eskimo (9)
EURO-RALPH, IMPORT. SYMBIOSE

Anteriormente disponível na Torso, a discografia dos anos 70 dos Residents volta aos escaparates, agora pela subsidiária europeia da Ralph, em formato “digipak” e com considerável melhoria de som. Não foi contemplada a estreia oficial do grupo, a sátira aos Beatles, “Meet the Residents”, mas, em compensação, uma das obras-primas do grupo, “Not Available”, passou a ter um som decente, uma vez que a anterior versão em compacto da Torso era simplesmente vergonhosa, abafada e sem graves (fenómeno idêntico ao de outros dois compactos com trabalhos seminais, que adulteram completamente o som de origem, “Tago Mago” dos Can e “Unrest” dos Henry Cow. Não há maneira de resolver o problema?).
“Not Available” é a odisseia trágica-marítima dos Residents que devia obedecer, mas não obedeceu, à teoria da obscuridade, ou seja, só deveria ser editado quando já ninguém se lembrasse da sua existência. Gravado em 1974, acabou por ver a luz do dia em 1978. É algo de único na pop dos anos 70, entre um desenho animado para adultos autistas e um cântico de marinheiros de um navio-fantasma seduzidos por Edweena, rainha dos pesadelos.
“The Third Reich ‘n’ Roll”, de 1976, com duas sequências “célebres”, “Swastikas on the Parade” e “Hitler was a vegetarian”, apresenta um alinhamento paranóico de “hits” dos anos 60, como existiam nas mentes retorcidas dos Residents. A culminar o massacre, uma versão comatosa de “Hey Jude”, dos Beatles, é o desrespeito total pela obra dos “fabulous four” e uma apologia à disformidade. Os Beatles não se queixaram, mas a pop sofreu um rude golpe na sua reputação. Mesmo que poucos tivessem reparado.
“Duck Stab/Buster & Glen”, de 1978, surge numa edição com dois CD de três polegadas, respeitando assim a separação entre os dois projectos, contrariando, deste modo, a da Torso, onde “Buster & Glen” aparece como um apêndice de “Duck Stab”. Aqui a electrónica solta-se de forma mais convencional e as canções poderiam mesmo entrar para o top de vendas da quinta dimensão, como “The electrocutioner”.
No ano seguinte, 1979, surge “Fingerprince”, música para bailado de onde se destaca a “suite” “Six Things to a Cycle”. A edição inclui o três polegadas “Babyfingers”, com a sequência de temas original, ao contrário da edição da Torso, onde os temas aparecem intercalados no resto do álbum e deixam de fora “Monstrous intro”.
“Eskimo”, ainda de 1979, sobe de novo a fasquia à altura das obras capitais. Sobre um ruído insistente de vento os Residents apresentam a sua tese de antropologia patológica da vida e costumes dos esquimós. Um trabalho no qual qualquer semelhança com a realidade não é pura coincidência, tão arrepiante como as regiões geladas em que se inspira. Dos homens com feitio de globo ocular e cartola saíram ainda “digipaks” da colectânea “Our Finest Flowers” e a colecção de remisturas de um dos temas-ícone dos Residents, “Kaw-liga”: “The Poor Kaw-Liga Pain”.

Frank Zappa - Have I Offended Someone?

Pop Rock

12 Março 1997
reedições

Cantar não ofende

FRANK ZAPPA
Have I Offended someone? (8)
Rykodisc, distri. MVM

Mesmo depois de morto, Frank Zappa continua a fazer ondas. Depois da fantástica colecção de excentricidades contidas no triplo CD “Läther”, a Rykodisc, editora que actualmente detém todos os direitos de edição, representação e distribuição da obra do músico, está prestes a lançar no mercado “Have I Offended someone?”, desta feita uma colectânea “politicamente incorrecta” de 15 canções favoritas do autor, seleccionadas pelo próprio em 1993, pouco tempo antes da sua morte. Entre o alinhamento incluem-se “Bobby Brown goes down”, “Catholic girls”, “Dinah-Moe humm” e “Valley girl” – o “single” que obteve mais sucesso nas listas de vendas, subindo, em 1982, ao 32º lugar do “top” da “Billboard” –, além de duas versões ao vivo, inéditas, de “Tinsel town rebellion” e “Dumb all over” e montagens e misturas diferentes das originais.
É o lado mais corrosivo de Frank Zappa, exposto num humor sem regras, que vergastou praticamente todos os temas tabu da sociedade norte-americana. Quem foram os ofendidos? As mulheres, os homens, os judeus, os católicos, os músicos, os executivos da indústria musical, o poder religioso e os franceses, na listagem elaborada, com não menos humor, pelo autor da excelente folha informativa que acompanha esta edição.
Opinião diferente tinha Frank Zappa, até porque, como Groucho Marx, também ele nunca poderia ser sócio de um clube que o aceitasse como sócio: “As pessoas que se ofendem mais com as minhas letras parecem ser os críticos de rock. O público, em geral, gosta delas.” Zappa teve, aliás, outra observação bastante sagaz sobre o jornalismo rock: “Pessoas que não sabem escrever e que fazem entrevistas a pessoas que não sabem pensar, com o objectivo de fazer artigos para pessoas que não sabem ler.”
Um dos seus temas mais bem sucedidos, o já citado “Valley girl”, em que é possível escutar a voz da sua filha Moon Unit, mereceu-lhe o seguinte comentário: “A pior coisa sobre este disco é o facto de ninguém o ter ouvido realmente… Tudo o que se disse sobre esta canção nunca tocou no ponto principal, que é a maior parte das pessoas serem cabeças de vento.” As pessoas, claro, riram-se e o sucesso da canção desencadeou na altura um fenómeno de “marketing” que incluiu a venda de “t-shirts”, marmitas de refeição, cosméticos e até um convite a Zappa para aparecer numa série de televisão e num filme, que acabou por ser feito sem a sua participação.
Na Noruega, onde muita gente não percebe peva de inglês, “Bobby Brown goes down” foi outro dos raros sucessos de vendas de Zappa. A canção fala de uma relação sado-masoquista entre um jovem e a sua “dominatrix”. Nos Estados Unidos, a transmissão radiofónica foi proibida, mas na Noruega e também na Alemanha e Áustria, como ninguém se deu ao trabalho de traduzir a letra, a canção chegou aos “tops”. Ou talvez tenha chegado porque alguém traduziu a letra…
Mas a melhor declaração, proferida por Zappa em pleno tribunal, durante a campanha anticensura que empreendeu, nos anos 80, contra a organização puritana norte-americana PMRC, que advogava a classificação etária para os discos de rock, é um mimo de candura misturada com cinismo: “É minha convicção pessoal que nenhuma letra de canção pode ferir quem quer que seja. Não existe nenhum som que possa ser emitido pela boca nem palavra que possa sair da boca com poder suficiente para mandar uma pessoa para o inferno.” Sim que mal pode fazer escutar uma voz de “falsetto”, amaneirada até aos limites da bichice, cantar “I’m so gay, and I like to be that way” sobre um ritmo “disco” tirado do clássico de Giorgio Moroder e Donna Summer “I feel love”? Frank Zappa, na sua última estalada.

Ratos quentes [Frank Zappa]

Pop Rock

12 Março 1997
reedições

Ratos Quentes

Dos mais de 50 álbuns que constituem o legado discográfico de Frank Zappa (F.Z.), a solo ou com os Mothers of Invention, todos reeditados pela Rykodisc, com distribuição MVM, seleccionámos, segundo um critério assumidamente subjectivo, 10 obras que consideramos fundamentais, dos anos 60 e 70, correspondentes à fase de maior inspiração. De notar que em meados da década de 80 o próprio Zappa se encarregou de controlar o processo de remasterização e, nalguns casos, remistura da totalidade da sua discografia, tendo as presentes reedições obtido a sua aprovação.

Freak Out

Estreia dos Mothers of Invention, editada originalmente em 1966 num duplo álbum. A presente reedição foi remasterizada e remisturada por F.Z., em 1987. Em pleno movimento “flower power”, Zappa introduzia a nota de discordância num discurso construído sobre a colagem, detritos de rock’n’roll e estilhaços de jazz. Inclui a “suite” “Help me, I’m a rock” e a paulada na cabeça dos “hippies” que é “Who are the brain police?” (9)

Absolutely Free

Mais experimental que o disco de estreia, “Absolutely Free” é o álbum comprovativo da influência seminal que os Mothers exerceram nas vanguardas da década de 70, em particular sobre dois dos seus baluartes, os Henry Cow, em Inglaterra, e os Faust, na Alemanha. O CD inclui dois temas extra que não figuram no original, em vinil, de 1967: “Bil leg Emma” e “Why don’tcha do me right?”. (8)

We’re only in it for the Money


Uma das obras-primas dos anos 60. Manifesto do contrapoder, com a sátira da capa a “Sgt. Pepper’s”, nunca antes o humor fora tão corrosivo nem a música tão inovadora. Em 1967, os “hippies” eram ridicularizados, o sistema feito em cacos e a revolução provocava gargalhadas. “The idiot bastard son”, “Flower punk”, “Take your clothes off when you dance”. As letras foram, na altura censuradas. “What’s the ugliest part of your body?” (“Qual é a parte mais feia do teu corpo?”). Resposta: “I know it’s your miiiinnnd!” (10)

Cruising with Ruben and the Jets

De 1968, remisturado por F.Z. em 1984. Paródia em torno da música para adolescentes, da “surf music” dos Beach Boys ao melaço das vocalizações “doo-wop” dos grupos dos anos 50. Canções de amor. Zappa era um romântico. O disco mais tradicionalista da carreira do músico que é, ao mesmo tempo, um dos mais subversivos. E uma delícia para os ouvidos. (8)

Uncle Meat


Editado em 1969 como banda sonora do filme com o mesmo nome. Remisturado por F.Z. em 1987, com reedição em CD duplo. O álbum de todos os experimentalismos e malabarismos. O serialismo e a música de câmara manipulados ao mesmo nível que o rock e a anedota. O segundo compacto contém mais de 30 minutos, para muitos massacrantes, de diálogos extraídos do filme, e a versão original de “King Kong”, com o violinista francês Jean-Luc Ponty, que posteriormente gravaria uma versão alargada do mesmo tema, num álbum com o seu nome. (8)

Hot Rats

Primeiro álbum a solo de Frank Zappa, gravado em 1969 e remisturado em 1987, para alguns, a sua obra-prima, é, sem dúvida, aquele que impõe o nome do músico como um dos “virtuoses” da guitarra. Aqui com as colaborações de Captain Beefheart e dos violinistas Jean-Luc Ponty e Don “Sugarcane” Harris. A presente reedição inclui informação adicional codificada, que pode ser lida nos sistemas Macintosh e Windows em qualquer computador com um “drive” de CD-ROM para leitura de CD áudio. (9)

Waka/Jawaka


Na mesma linha de “Hot Rats”, “Waka/Jawaka”, de 1972, inclui o longo tema com este nome, um novelo de “jazz” e de virtuosismo instrumental levado até ás suas consequências mais bizarras. Com uma secção de metais em que pontifica o trompete de Sal Marquez e as presenças de fabulosos executantes como Don Preston, George Duke e Aysnley Dunbar. (9)

The Grand Wazoo


Ainda de 1972, “The Grand Wazoo” aumenta ainda mais a complexidade e a importância de Frank Zappa como um dos maiores compositores do século XX. Uma “big band” que inclui os mesmos solistas do anterior “Waka/Jawaka”, aumentada por uma secção de madeiras e outra de percussões, recria e desmonta todos os estilos de música moderna, da popular à erudita. Um “monstro” de pormenores inesgotáveis que adquire novos sentidos em cada audição. (8)

Over-Nite Sensation


Quando ouvimos pela primeira vez, rimos a bandeiras despegadas. É o álbum que mais directamente apela aos jogos de humor e ao absurdo de situações desopilantes que retratam os Estados Unidos da estupidez. Das palavras às construções musicais, só por si, desopilantes, é um murro nas convenções e umas cócegas na inteligência. “Camarillo brillo”, “Dirty Love”, “Montana”. Um monumento ao génio. A presente reedição, ao contrário da anterior, separa este disco de “Apostrophe”. (9)

One Size Fits all


Nas entrelinhas do título esconde-se a obscenidade como forma de arte. Em 1975, Frank Zappa manipulava como queria o seu universo musical multifacetado, mas, por esta altura, já com contornos perfeitamente codificados. O “establishment”, que sempre combateu, começava a aceitá-lo. F.Z. ganhava o estatuto de compositor excêntrico e os próprios “tops” se preparavam para acolher a graça das suas dissidências. “One Size Fits all” é um típico disco de fusão, com doses cuidadosamente equilibras de humor e virtuosismo instrumental (com a presença do “blueman” Johnny “Guitar” Watson), onde, pela primeira vez, “edits” de estúdio e ao vivo são colados numa mesma canção. Estratégia que viria a ser utilizada em vários álbuns seguintes. (8)

Hedningarna - Hippjokk + Garmarna - Guds Spelemän

POP ROCK

12 Março 1997
world

Companheiros de escola

HEDNINGARNA
Hippjokk (8)
Silence, distri. MC – Mundo da Canção

GARMARNA
Guds Spelemän (8)
Xxource, distri. MC – Mundo da Canção

Olhem lá para a pinta de malucos dos meninos. São os suecos Hedningarna, a coqueluche da música, hã…, tradicional escandinava, no seu muito aguardado regresso discográfico, agora reduzidos a um trio. Quer dizer que neste seu novo álbum os três meninos – Anders Stake, Hällbus Totte Mattsson e Bjӧrn Tollin – ficaram sem as meninas, Sanna e Tellu, as bruxinhas boas dos anteriores e fabulosos “Kaksi” e “Trä”. Foi-se também embora a sanfona assassina (se calhar explodiu mesmo…). A loucura instrumental, essa, permanece, se bem que, agora, num registo mais normalizado e, por isso, menos escandaloso. Além disso – surpresa –, as vozes de Stake e Mattsson cumprem satisfatoriamente o registo de arrebatamento xamânico característico dos Hedningarna, tarefa que antes pertencia à falange feminina.
Fazendo o ponto da situação, temos que o grupo sedimentou um estilo que tem vindo a fazer escola, não só no seu país de origem: um tribalismo exacerbado – nalguns casos de ressonâncias quase africanas – que, paradoxalmente, levando em conta a evolução sofrida pelo grupo de “Kaksi” para “Trä”, dispensa nesta sua nova fase, quase por completo, a componente electrónica. Nesta medida, “Hippjokk” pode ser encarado como um retorno discreto às proximidades da tradição, como acontecia no álbum de estreia, “Hedningarna”. Algo que se pode verificar com nitidez em temas como “Dufwa” ou “Skåne”, o que poderá significar uma tomada de consciência quanto ao esgotamento de uma fórmula de ruptura que terá atingido em “Trä” os seus limites.
Poderoso, como seria de esperar, mais do que nunca apoiado no frenesim das percussões (estonteantes, faixas como “Bierdna” ou “Kina”), “Hippjokk” deixa de fazer da estratégia de choque uma questão de honra, ao mesmo tempo que mostra que os Hedningarna estão bem de saúde, provavelmente até libertos do peso de uma responsabilidade que os obrigava a transportar, sozinhos, o fardo da revolução.
Libertos de qualquer pressão, os Garmarna prosseguem, por seu lado, o seu caminho de renovação da música de raiz tradicional sueca, neste caso ainda com a voz de Emma Hårdelin a conferir uma força adicional às polifonias colectivas, “drones” de sanfona, samplagens e percussões etno-rock que tornam único o som dos Garmarna, inovadores dentro da tradição sueca, sem contudo a atirarem pela borda fora, como, apesar de tudo, ainda fazem os Hedningarna. Todavia, a aproximação entre estes dois grupos faz-se sentir em temas como “Min man”, “Varulven” ou “Herr Holger”, fenómeno de simbiose, não de todo desejável, provocado pelo atrás mencionado “efeito de escola” dos autores de “Kaksi”, o que não acontecia no anterior álbum dos Garmarna, “Vittrad”. Apetece dizer que os Garmarna, num altura em que os Hedningarna parecem ter chegado a uma encruzilhada, foram buscar influências a “Kaksi” e “Trä”, assumindo-se como os continuadores de um trabalho ainda com novas potencialidades por explorar.
“Hallings” da Noruega, um poema do povo “saami”, baladas medievais, histórias de lobisomens e tragédias de família desdobram-se nos tons de vermelho que se tornou a cor fundamental, tanto da embalagem como dos sons, de “Gude Spelemän”. Os Garmarna decidiram trocar a poesia pela energia.

Natação obrigatória [Morphine]

Pop Rock

5 Março 1997

NATAÇÃO OBRIGATÓRIA

“Low rock” é como Mark Sandman, baixista e “tritarista” dos Morphine, define o som do novo álbum do grupo, “Like Swimming”. Sem fado, mas com mais espaço e dedicatória à música egípcia. E um uso intensivo dos sintetizadores, só porque estavam ali mesmo à mão no estúdio. O regresso a Portugal está marcado para o princípio de Maio.

Depois de “Good”, “Cure for Pain” e “Yes”, o novo álbum dos Morphine, “Like Swimming”, exibe, em simultâneo, as marcas de uma ainda maior contenção e o desejo de experimentar novas paletas sonoras. Para Mark Sandman, como o próprio explicou ao PÚBLICO, trata-se tão-só de tirar máximo partido das circunstâncias e de aproximar a dinâmica dos espectáculos à alquimia dos discos.

PÚBLICO – Sobre o novo disco já afirmou que tem “mais subtracção do que produção”. Mas a verdade é que enriqueceram o som com instrumentos como sintetizadores, sequenciadores, órgão electrónico…
MARK SANDMAN – Digamos que acontecem menos coisas ao mesmo tempo. Há mais espaço. Um espaço que funciona como se fosse outro instrumento. Os outros discos já tinham sintetizadores, só que, desta vez, todos esses instrumentos que já usamos desde o início foram misturados mais alto. De resto, o método de gravação foi o mesmo, de maneira a que as canções possam ser tocadas ao vivo.
P. – O que é exactamente a “tritar” que surge na ficha técnica?
R. – É uma invenção minha. Tem uma corda de baixo e duas de guitarra.
P. – A necessidade de um som diferente?
R. – É mais uma questão de ser mais fácil de tocar do que um instrumento normal.
P. – Para os Morphine a técnica é absolutamente secundária?
R. – Sim, a esse nível sentimo-nos completamente perdidos [risos]. Nós tentamos, mas… Eu não tenho técnica do baixo de quatro cordas. Não consigo tocar. Toco uma canção e as mãos já não conseguem…
P. – Apesar disso, o som de baixo dos Morphine faz, por vezes, lembrar um contrabaixo…
R. – Mas convidámos para este disco um amigo que toca contrabaixo, na primeira canção e em “Empty box”. E, em “Hanging on a curtain”, o que parece ser um contrabaixo é, na verdade, um “mellotron”.
P. – “Mellotron” que foi um dos primeiros instrumentos electrónicos a ser utilizado nos anos 60 e, sobretudo, nos 70, pela escola progressiva. O termo “progressivo” assusta-o?
R. – “Progressivo” tem sido um termo cuja definição está constantemente a mudar. Como o “jazz” ou “alternativo”.
P. – “Like Swimming” demonstra um gosto, por vezes subliminar, pelos blues e pelo jazz. São dois universos determinantes no som dos Morphine?
R. – Ouço de tudo. Gosto de um tipo particular de blues, do início dos anos 50, os discos de Muddy Waters dessa época. Há um disco dele fabuloso, sem bateria, somente contrabaixo e “slide guitar”, com mais dinâmica do que qualquer energia rock dos dias de hoje. E muito mais dramático.
P. – Também aparecem em “Like Swimming” ambientes fumarentos, de bares em horas de fecho, um pouco ao modo de Tom Waits…
R. – Em certas canções há, de facto, muito esse ambiente “smoky”, do qual, sobretudo, os escritores gostam muito de falar.
P. – Como é que os Morphine trabalham em estúdio? Sente-se que os processos devem ser diferentes do habitual.
R. – Para a gravação de “Like Swimming”, usámos um gravador de 24 pistas, o que é vulgar nestas situações. Tentámos tocar o mais que pudemos ao vivo no estúdio. Nalguns casos, tivemos de acrescentar sons por cima. Costumamos trabalhar em estúdio bastante depressa, porque as canções vêm quase todas já rodadas dos espectáculos ao vivo. Mas acontece que acabamos por usar bastantes “overdubs”, por uma razão muito simples. É que depois de gravarmos a banda a tocar em conjunto, sobram ainda uma quantidade de pistas vazias. Nessa discutimos entre nós e incluímos toda a espécie de efeitos bizarros, utilizando tudo o que temos à disposição no estúdio. Daí a tal inclusão dos sintetizadores ou do “mellotron” nas misturas de “Like Swimming”, só porque, na altura, estavam ali…
P. – O que, ao vivo, é impossível de fazer. São uma banda diferente, nos concertos?
R. – Ao vivo, temos de fazer com que a coisa funcione só com três pessoas. Penso que soamos melhor ao vivo, o que, para mim, é óptimo, na medida em que acho que os nossos discos já são óptimos!... Já agora, tivemos uma quantidade de pedidos de entrevistas em Portugal, o que nos espantou, tratando-se de um país tão pequeno. Talvez cinco vezes mais do que as que tivemos em Inglaterra… Porquê? O grupo tem obtido uma reacção espantosa em Portugal. Posso dizer que a minha estadia aqui, quando o grupo veio cá tocar, influenciou totalmente a minha maneira de compor. Talvez fosse por causa de todas as sardinhas que comi, não sei!...
P. – A propósito disso, declarou no passado que iria usar um fado neste disco. Não cumpriu a promessa…
R. – Não usei, de facto, nenhum fado, mas isso não significa que a influência não esteja presente… O que talvez explique a boa reacção dos portugueses aos nossos discos…
P. – Também falou numa orquestra egípcia…
R. – Bem, mas isso aparece no tema instrumental de abertura, “Lilah”. Fizemos uma versão mais produzida, com vozes, e uma utilização intensiva de um naipe de cordas, mas não ficou pronta a tempo de entrar no álbum. Acontece que tenho vindo a interessar-me a fundo pela música egípcia, nos últimos anos. Descobri uma das superestrelas da música egípcia, Oum Kalsum [ou Kalthoum, por coincidência, uma das vozes preferidas por Amália Rodrigues]. Gravou cerca de 300 álbuns. E há um número enorme de bandas, uma cena pop egípcia com uma quantidade de estilos diferentes.
P. – Reconhece que não é vulgar um músico de rock interessar-se por esse tipo de sons?
R. – Na verdade, não ouço muita música pop quando estou em casa. É como ler um livro, não estou constantemente a ler livros, uns a seguir aos outros. Mas nessas ocasiões, ou quando estou a conduzir, ouço sempre discos que nunca, mas nunca, passam na rádio. Além de Oum Kalsum, música irlandesa, músicos irlandeses que tocam em todo o lado e vão para casa gravar discos e tocar durante horas e horas sem parar. Pessoas que aprenderam por elas próprias, cujo único prazer é tocar, sem se preocuparem em ser “pop stars”.
P. – Os Morphine também seguem os seus próprios métodos. Por exemplo, nas digressões, recusam-se a fazer as primeiras partes de outros artistas. Por alguma razão em especial?
R. – É muito mais divertido assim. Queremos que as pessoas venham para ver e ouvir os Morphine e não outra banda qualquer.
P. – O termo “post rock” diz-lhe alguma coisa?
R. – Absolutamente nada. O termo que se aplica a nós é “low rock”.
P. – Os Morphine vão voltar a actuar em Portugal proximamente?
R. – Sim, no próximo dia 1 de Maio, no Coliseu, em Lisboa. Só falta a editora confirmar.

Morphine - Like Swimming

Pop Rock

5 Março 1997

Morphine
Like Swimming (9)
RYKO, DISTRI. MVM

Não é “pós-rock”, mas “low rock”, como Mark Sandman gosta de chamar à música dos Morphine. Chamem-lhe o que quiserem. A dose de Morphine que o trio formado por Sandman, Dana Colley e Bill Conway vem injectando desde “Good” nas veias da música pop atinge aqui o seu “flash” mais intenso. Os Morphine assimilaram, intuitivamente ou dos compêndios, não importa, a tradição das franjas mais fumarentas e polposas dos “blues”, do “rhythm’n’blues”, do “cabaret” e do “jazz” mais cambaleantes, baixaram-lhes as rotações e deitaram-lhes picante para cima. A cabeça não tem direito a nada. O corpo é que paga, obrigado a pegar ou largar esta energia que parece brotar do baixo-ventre, canalizada pelo sax barítono, cada vez mais visceral, de Dana Colley e as cordas, do baixo ou da “tritar”, de Mark Sandman. Mais ainda do que nos álbuns anteriores, “Good”, “Cure for Pain” e “Yes”, “Like Swimming” atira pelas colunas um som quase palpável resultante de uma produção que, mais do que nunca, privilegiou o espaço e as dinâmicas, sem se esquecer de abrir as portas aos sintetizadores e outros artefactos electrónicos, que agora ganham uma maior margem de manobra. Parece simples o modo como o grupo põe em prática a sua teoria de “mais subtracção e menos produção”, mas nesta aparente simplicidade esconde-se um trabalho de escultura sonora que neste álbum adquire uma concisão quase maníaca. É o “swing” aliado ao espectáculo de variedades e ao exotismo, num comboio dos duros com a mesma força e eficácia de um terrorista como Clint Ruin-Jim Foetus, mas sem o demonismo e infiltrado por uma descomunal carga de sensualidade. É como nadar num mar de energia ou numa piscina de fogo. Uma facada nas costas dos narcodependentes anónimos.

Márta Sebestyén - The Best Of...

POP ROCK

5 Março 1997
world

Márta Sebestyén
The Best of...
HANNIBAL, DISTRI. MVM

O reconhecimento internacional da cantora húngara Márta Sebestyén tem aumentado na razão inversa ao seu afastamento das raízes tradicionais que caracterizava a sua música quando cantava ao lado dos Vujicsics e Muzsikás. É assim que, depois de uma participação inusitada no projecto Towering Inferno, Márta chega ao cinema e logo no filme mais nomeado para os Óscares da academia deste ano, “The English Patient”. Uma participação que se reduz ao minutinho do primeiro tema, uma canção de embalar tradicional, naquele que é o único original do álbum. Tudo o mais são canções retiradas da discografia anterior da cantora, com os Vujicsics, em “Vujicsiscs”, os Muzsikás, em “Márta Sebestyen and Muzsikás”, “The Prisoner’s Song”, “Blues for Transylvania” e “Máramaros”, e a solo, em “Apocrypha” e “Kismet”, estes dois últimos os álbuns que representaram um corte mais radical com a vertente étnica de todos os seus trabalhos anteriores. Quem nunca ouviu falar de Márta Sebestyen e vai ver “The English Patient” poderá querer saber mais sobre a cantora. É esta a principal virtude de uma colecção que revela apenas uma parte ínfima de uma das vozes mais belas do nosso tempo. (8)

22/12/2008

Sete, o número da cura [Zap Mama]

Pop Rock

5 Março 1997

Sete, o número da cura

“Seven” é o sétimo sentido que cura e o título do novo trabalho das Zap Mama, filhos das viagens de Marie Daulne pelo hip hop, o reggae, a soul e a cultura tuaregue. Polifonias dos mundos antigos e modernos para encher os pulmões.

Para Marie Daulne, mentora do grupo vocal feminino Zap Mama, agora com uma secção instrumental e contrato assinado com uma nova editora, é tudo uma questão de descoberta e aprendizagem. Se “Seven” é o seu álbum mais acessível, tal não acontece por uma questão de moda, mas porque ela descobriu a existência de outras maneiras de dar a ouvir as polifonias do mundo tradicional ao mundo moderno. Com a mesma paixão pelo som do hip hop. “O importante é fazer com que as pessoas cantem.”
PÚBLICO – Por que razão escolheu “Seven” para título do terceiro álbum das Zap Mama?
MARIE DAULNE – Sete é um algarismo que está presente em inúmeras culturas. Além disso, há os sete pecados mortais e toda a espécie de conotações simbólicas. Em África, acredita-se na existência de um sétimo sentido, concedido aos artistas, que têm o poder de curar as almas.
P. – A mudança de editora, da Crammed para a Virgin, significa que estavam descontentes com o trabalho da primeira? A mudança implicou alterações no estilo e métodos de trabalho do grupo?
R. – Sim, a Crammed é uma editora pequena e nem sempre dispunha dos meios financeiros para poder assumir a dimensão internacional que pretendíamos. A Virgin é maior e creio que poderá assegurar-nos o sucesso a esse nível. Quanto à nossa música, nada mudou…
P. – Mas é o vosso álbum mais acessível…
R. – Sim, porque cantamos em inglês e temos agora uma secção rítmica que ajuda a uma leitura mais fácil dos ritmos, recorrendo em simultâneo a cadências que toda a gente conhece.
P. – Ao ponto de haver uma série de temas com base no hip hop. Não é, um pouco, encostar-se a uma moda?
R. – Não tem nada a ver com ser ou não uma moda, mas apenas com o facto de gostar imenso de hip hop. A moda surgiu posteriormente, na world music, com grupos como os Deep Forest. Quanto ao hip hop, ouço imenso, sobretudo Spearhead, que é o Michael Franti, com quem, aliás, trabalhei [na banda sonora de “Blue in the Face”]. Também gosto dos US 3 e dos The Roots. Sinto que está a chegar uma nova geração, que aceita, em primeiro lugar, o som, em detrimento da melodia. É o som que fala por si. Se for a um concerto dos The Roots verifica que tocam uma caixa-de-ritmos com a boca ou fazem uso intensivo do “scratch”. Servem-se de tudo o que têm à mão para produzir som. Esta é a filosofia do hip hop e também a minha. A diferença está em que, enquanto os americanos recorrem a todas as máquinas que têm à sua disposição, na Europa fazem-se coisas bastante mais acústicas, mais naturais, mesmo mais silenciosas. Mas, repito, oponho-me a seguir qualquer moda, por isso recuso integrar-me no universo do hip hop ou do jazz.
P. – Apesar disso, nota-se, em “Seven”, que houve um trabalho de produção minucioso. Como é que o grupo trabalha em estúdio? Gravam uma voz de cada vez ou cantam logo em conjunto?
R. – Trabalho sozinha. Todos os discos do grupo foram feitos por mim, sozinha. Gravo uma voz de cada vez, sozinha, mas sabendo de antemão o som que pretendo. É um processo que vivo apaixonadamente, passo o tempo todo a intrometer-me, a mexer em tudo, a escutar o mínimo pormenor. Mas não sou como Bobby McFerrin, que não precisa de mais ninguém. Não resultaria se fizesse como ele. É preciso misturar timbres, vozes diferentes, uma graves, outras agudas, umas outras roucas. Pedi às outras raparigas que cantassem como eu queria. Em “Sabsylma” mudei as raparigas, porque quis usar outros timbres diferentes. Fiz o mesmo neste terceiro álbum, em que pretendi misturar o timbre das vozes com outros instrumentos.
P. – Essa presença instrumental mais forte não descaracterizou o grupo? As Zap Mama deixaram de ser o grupo de vozes “a capella” dos dois primeiros álbuns…
R. – É simples, as Zap Mama não são um grupo no sentido restrito do termo, mas um conceito que eu própria inventei. No início, a ênfase era posta nas polifonias do mundo inteiro e foi isso que fiz. Presentemente, numa altura em que toda a gente tem a cabeça voltada para a polifonia, decidi cantar de outra forma e voltar-me para o mundo moderno.
P. – Ao vivo, as coisas funcionam da mesma maneira?
R. – Quem já ouviu as novas Zap Mama já comprovou a existência da nova componente rítmica e instrumental. Digamos que, hoje, tocamos para um público mais intelectualizado, enquanto, no início, o fazíamos para uma plateia mais simples, talvez mais próxima do mundo africano. Hoje tocamos para toda a gente. Todos têm direito a escutar polifonias.
P. – Como conheceu o “rasta” U-Roy, que participa em “XXX”?
R. – O meu empresário é também organizador de concertos e falou-me de um com U-Roy, um músico que ouço e adoro desde os meus 14 anos. Larguei tudo para ir ao concerto, encontrei-me com ele e convidei-o a tocar connosco. Felizmente, ele concordou…
P. – Como surgiu a ideia de fazer a versão de “Damn your eyes”, de Etta James?
R. – Quando era adolescente, ouvi esta canção na altura em que sofri uma desilusão amorosa e foi ela que me ajudou a sair da tristeza. Ao inclui-la em “Seven” achei que talvez pudesse, de novo, ajudar outros adolescentes a sair da mesma situação…
P. – Agora que o fenómeno da world music está firmemente implantado, é mais fácil fazer chegar ao público a música das Zap Mama?
R. – Sem dúvida que sim, mas o meu objectivo não é tirar partido da sorte, mas sim descobrir e divulgar os sons de outros povos. Se um maior número de pessoas ouvir a música das Zap Mama, o importante é poderem dizer: “Ah! Olha a música dos tuaregues!” Ou: “Oh, é assim a música dos pigmeus?” Este é o meu objectivo principal. Pessoas que nunca tiveram antes qualquer contacto com a música étnica, vão descobrir e apreciar outros povos e culturas e tomar consciência de que não estão sós sobre a Terra.
P. – “Sabsylma” tem como conceito base a luta contra a injustiça. “Seven” parece inclinar-se mais para o lado do misticismo. É verdade?
R. – Não sei se há misticismo… A única diferença que sinto em relação ao que era quando fiz “Sabsylma” é que agora sou mãe. Tenho a impressão de ser mais realista neste álbum. No primeiro disco do grupo, vivia num mundo que, embora sendo real, era um mundo que ninguém conhecia.
P. – “Zap Mama” e “Sabsylma” jogaram, em grande parte, no efeito da surpresa. Agora que ela se desvaneceu, as Zap Mama investigam novos caminhos?
R. – Estou sempre a descobrir coisas novas. Novos músicos, como Stéphane Galland e Michael Hatzigeorgiou, com quem aprendi muito. Com os tuaregues, descobri novas maneiras de funcionar. Fez-me abrir os olhos para novas realidades.
P. – O estilo vocal das Zap Mama fez escola, com seguidores como as Évasion, por exemplo. Como encara este facto?
R. – É verdade. Quanto mais pessoas houver para fazer este estilo de coisas, melhor. Desde que o façam bem, claro. Se não fosse assim, não fazia sentido gravar discos. Por mim, gostaria de fazer cantar as pessoas que sentem desejo de o fazer.
P. – Para acabar, que força é que a faz cantar?
R. – Saber que, através do canto, se cura muitas doenças. Que a melodia tem um poder de cura. As pessoas têm falta de ar, em vez de tomar remédios, deviam encher os pulmões. E o canto é, na essência, encher os pulmões.

Storvan - An Deiziou Kaer

POP ROCK

5 Março 1997
world

Storvan
An Deiziou Kaer
KELTIA, DISTRI. MC-MUNDO DA CANÇÃO

Os Storvan são uma das três formações que ocupam a vanguarda actual do movimento de recriação da música tradicional bretã, ao lado dos Skolvan e Strobinell, por coincidência todos com nome começado por S. “An Deiziou Kaer” (“os belos dias”) sucede a “Digor ‘n Abadenn” na discografia do grupo, revelando um progresso assinalável na maneira como este vem trabalhando a música de uma região onde a marca celta ficou para sempre impressa. Em termos de apreciação instrumental, não conseguimos recorrer a outra palavra, para definir a impressão que nos provocou a sua audição, senão: magia. Pura magia. O “laridé” em seis tempos da abertura e o “hanter dro” seguinte, para além de fazerem dançar um coxo, destilam aquela substância volátil e misteriosa que faz mexer as cordas mais secretas da alma. “Ar biniou” insere-se na vertente do sagrado, inseparável da tradição bretã, numa transposição para bombarda de uma história sobre o “biniou” (gaita-de-foles bretã) contada pelas míticas irmãs Goadec, ainda retomadas em “An tad moualh koz et porsac’h”. Na inevitável “Suite de danses fisel”, Christian Facheur volta a evidenciar os seus dotes de “virtuose” da bombarda, um dos instrumentos mais exigentes, mas também de sonoridade mais evocativa, da música da Bretanha. Em “Danse de Bitêklé”, os Storvan contam as 99 estalagens que, segundo a tradição, se erguem ao longo do caminho que vai da Terra ao Paraíso. Precisamente a meio caminho fica a de Bitêklé, aquela onde, todos os sábados, Deus vai buscar, para as levar para o paraíso, as almas dos que ainda não estão demasiado bêbados. Para nós, dizem os Storvan, fica a tarefa de encontrar os passos certos para esta dança entre dois mundos. A nós cabe-nos ainda essa outra tarefa, talvez a mais nobre de todas, de moldar os nossos hábitos de escuta, abandonando a passividade que impede o discernimento, se quisermos aceder ao que a música tradicional tem de mais profundo para nos dizer: a correspondência de movimentos, entre a dança das notas e o devir anímico. A música dos Storvan leva-nos aonde quisermos ir. Um dos melhores álbuns do ano passado que transitaram para o ano novo, antecipando os “belos dias” da Primavera que está para nascer. (9)

Lal Waterson & Oliver Knight - Once In A Blue Moon

POP ROCK

5 Março 1997
world

Fantasmagoria

LAL WATERSON & OLIVER KNIGHT
Once in A Blue Moon (10)
Topic, distri. MC-Mundo da Canção

Depois dos Watersons, ainda nos anos 60, da lição dos pais aos filhos, de “Waterson: Carthy” e de a jovem Eliza Carthy, primeiro com Nancy Kerr, recentemente, a solo, em “Heat, Light & Sound”, gritarem alto o nome da família, chegou agora a vez de outro dos seus elementos, Lal Waterson, com a colaboração de Oliver Knight (guitarras), abrir o livro noutra página. Provavelmente a mais brilhante.
A voz de Lal condensa, num universo pessoal e estelar, tudo o que existe de mais emocional em Norma Waterson e existia em Grace Slick (“Flight of the Pelican”) e Melanie (“Stumbling on”, “Wilson arms”) ou de inquietante, numa quase personificação de Nico, em temas como “Her white gown” e “Dazed”, de uma beleza sepulcral. Envolto numa produção atmosférica onde a reverberação e o dramatismo das vocalizações atingem, quase todos, a dimensão do sobrenatural, “Once in A Blue Moon” conta ainda com as colaborações, nos apoios vocais, em dois temas, de Norma Waterson e Jo Freya, uma ex-Blowzabella que também toca saxofone e clarinete, Martin Carthy, guitarra acústica num tema, e Charles O’Connor, rabeca, também num tema, entre outros nomes menos sonantes. Quanto a Oliver Knight, na guitarra, recorda, no estilo e na sonoridade, Martin Simpson. Mas o todo supera a junção das partes.
Disco lunar, parente das fantasmagorias de Nico e de Tim Buckley, difícil de enquadrar numa corrente, oscila entre a emoção levada a extremos de tensão quase insuportáveis e um tipo de experimentação que vai muito além do que a própria June Tabor ousou em “Angel Tiger” e “Against the Streams”. A este título, “Phoebe”, no modo como é feita a teatralização da guitarra eléctrica saturada de efeitos e distorção de Oliver Knight, constitui um dos momentos limite e mais perturbantes de “Once in A Blue Moon”. 1997 está a recolher do ano que findou alguns dos seus melhores trabalhos. Ambiental, trágico, totalmente introspectivo, “Once in A Blue Moon” é uma obra-chave do que poderíamos designar por “pós-folk”, em que a voz de Lal Waterson ultrapassa tudo o que poderíamos esperar. No pólo oposto, mas não menos brilhante, ao sol dos Dervish, está a lua de Lal Waterson.

A bolha de sabão

Pop Rock

26 Fevereiro 1997
OPINAR

A BOLHA DE SABÃO

Uma bolha de sabão, quando rebenta, faz “pop”. Não conseguiremos encontrar mais nenhum tipo de consistência e permanência na música que também faz “pop”. Ela é, por essência, mesmo assim. Subsiste enquanto perdura uma imagem, uma moda, uma tendência. Afinal, ela não existe sem uma indústria a suportá-la. E a indústria não defende a arte, fabrica produtos para venda. A sua finalidade não é criar obras-primas, mas facturar cifrões.
Não interessa promover o que perdura. O objectivo é manter uma dinâmica de consumo, de manutenção de uma estética do efémero, em que as músicas se canibalizam mutuamente, sobrevivendo enquanto sobrevive o gosto e a apetência das massas, num período de tempo limitado e pré-determinado pela indústria.
Os “media” obedecem, por seu lado, às imposições do “timing” das editoras. A procura, por vezes desesperada, da “next big thing” disfarça o vazio que habita na maior parte das “novas” propostas avançadas pelos “novos” artistas. É a pescadinha do rabo na boca, o apagamento da história. Ou a sua reescrita à luz de interesses políticos e comerciais específicos, como no “1984” de Orwell.
Sabe-se que é assim, mas alinha-se no jogo. Na pop nada de novo foi dito depois dos Beatles, depois dos Beach Boys, depois dos Kinks ou, pelo contrário, a ruptura com o passado é condição necessária para que a ilusão persista? É verdade que, com a proximidade do final do século, o tempo se comprime e todas as épocas parecem próximas e disponíveis para reciclagem. Fenómenos de grupos como os Oasis ou Kula Shaker são sintomáticos da autofagia que predomina nos lugares cimeiros dos “tops”.
Mudaram os meios de produção e difusão, aumentaram a velocidade e a quantidade, isso é um facto. A música e os músicos pop são os mais narcisistas do mundo. Toda a gente se vê no espelho de toda a gente. David Thomas, dos Pere Ubu, disse uma vez, numa entrevista, que existe, actualmente, “música a mais”. Somos invadidos por sons que mais não são do que a mera tecnologia e conceitos de produção a camuflar a falta de talento. Os Kraftwerk, ao menos, não esconderam o jogo, tirando o máximo partido da mentira.
É verdade que existiu ao longo das últimas quatro décadas uma corrente subterrânea que soube aproveitar continuar e desestruturar as lições da história. Uma linhagem de “outsiders” que sempre se esteve nas tintas para fazer coincidir a sua música com os lugares-comuns das respectivas épocas. Dos anos 60 até hoje. Dos Velvet Underground, Captain Beefheart e Mothers of Invention aos Soft Machine, Henry Cow, Can, Magma e Faust. Dos Art Bears aos Art Zoyd. De Ron Geesin a Brian Eno. De Holger Czukay a Holger Hiller. De Anthony Moore a Barry Adamson. Dos Cluster e Neu! aos Trans AM e Tortoise.
Entre o Céu e o Inferno, a distância é a que separa os ouvidos de quem ouve e de quem faz. Qual é melhor, “Sgt. Pepper Lonely Heart’s Club Band”, dos Beatles, ou “We’re only in it for the Money”, uma sátira, incluindo a capa, ao primeiro, de Frank Zappa com os Mothers Of Invention? Ambos ficaram para a história como marcos, mas pelos motivos opostos. Os Beatles, porque conseguiram fazer a síntese perfeita de uma época, juntando o génio da inspiração e a percepção da sensibilidade do final da década a tudo o que os meios de produção tinham para oferecer, em 1967. Os Mothers, exactamente no mesmo ano, porque souberam usar em seu proveito esses mesmos meios (da tecnologia à vampirização do imaginário colectivo), manipulando e ridicularizando a seu bel-prazer, com o mesmo génio e uma descomunal dose de cinismo, quer a indústria, quer o público “mainstream”.
Na verdade, a bolha de sabão, ao rebentar, não faz barulho nenhum.

Faust - You Know Us

Pop Rock

26 Fevereiro 1997

Faust
You Know Us
RER, IMPORT. ANANANA

“You Know Us”, “You Know Faust”, “You Know”. O “lettering” permite qualquer destas leituras. Joga-se no reconhecimento. Tudo na embalagem do novo álbum do mítico grupo alemão, da caixa e folheto transparentes à radiografia do punho fechado, como logotipo, remete para a iconografia do primeiro álbum da banda Faust, marco não só da música dos anos 70, como da música popular em geral.
Se o álbum do ano passado, “Rien”, primeiro da “ressurreição” oficial do grupo, agora reduzido ao trio Werner Diermaier, Joachim Irmler e Jean-Hervé Peron, expunha o lado mais cacofónico e “industrial”, resultante da produção de Jim O’ Rourke, o novo “You Know Us” abarca as múltiplas facetas que caracterizam a discografia da década de 70, “Faust”, “So Far”, “The Faust Tapes” e “Faust IV”. Facto a que não será alheia a mudança de editora, da Table of Elements para a Recommended, de Chris Cutler, que durante os anos de interregno sustentou nos seus catálogos a mística do grupo, através da distribuição daqueles quatro álbuns, bem como a edição das colectâneas de material inédito disperso, “Munic & Elsewhere” e “The Last LP”, posteriormente reunidos em “Seventy One Minutes of Faust”.
“You Know Us” não traz nada de novo. O que, tratando-se de um grupo que voltou do avesso a música popular deste século, é quase escandaloso. O reverso da medalha está em que os safados continuam a ser pais na arte da manipulação e da improbabilidade musical. As bandas do pós-rock devem-lhes tudo. E a verdade é que, 26 anos volvidos sobre a bomba que representou a sua estreia, em 1971, na Polydor, os Faust voltam a dar as cartas para o baralho dos mais novos.
Vocês conhecem-nos. Somos os Faust e fazemos as bandas sonoras dos vossos pesadelos mais bizarros. Temos canções pop com sulcos escavadas pelas garras de Freddy Krueger, temos sinfonias de metal, temos “trips” no escuro, temos a contagem das pausas entre os temas como se fossem temas, temos um tango. Temos orgulho de causar hoje tanto ou mais espalhafato do que aquele que provocámos quando chegámos para sobressaltar o progressivo.
São os Faust, de novo com o punho erguido, a saudar a década do caos. (8)